São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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Querem transformar a Receita Federal numa Sunab; Mero registro; Boa poesia; Banana Republic; Jean, deixa "aquele moço", o KBE, em paz; Eremildo, "The Idiot", quer falar com Kandir; Os papéis da matança podem virar cinzas; João Guilherme Vargas Neto

ELIO GASPARI

Querem transformar a Receita Federal numa Sunab
Os ministros Antonio Kandir e Pedro Malan lançaram a pedra fundamental de uma nova obra: a transformação da Secretaria da Receita Federal numa Sunab, aquele órgão que deveria funcionar, não funcionava e, quando foi extinto, ninguém reclamou.
Depois de várias tentativas, o Planejamento conseguiu tungar o Fundo de Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização, o Fundaf. Trata-se de uma caixa alimentada por tudo o que a Receita arrecada sem ser imposto. São multas, juros de mora de caloteiros e leilões de contrabando. Em 1998 esse ervanário deverá ficar em R$ 3 bilhões.
O dinheiro é usado para equipar a Receita, pagar seus contratos (com o Correio, por exemplo), treinar fiscais e pagar 90% da folha do pessoal. Já lhe haviam tomado R$ 2 bilhões na mágica do Orçamento. Tudo bem. Agora, tiraram-lhe mais R$ 500 milhões. Com o dinheiro que sobrou, a Receita simplesmente não poderá funcionar, mas aí é que entra o truque. A caixa do governo informa que assume todos os compromissos da folha (o que é verdade), honrará todos os contratos e pagará todas as despesas (o que é promessa). Num ano eleitoral, com uns 15 parlamentares autuados pela Receita, a chave do cofre sairá da mão dos profissionais e irá sabe-se lá para onde.
Foi a autonomia da Receita quem pegou Paulo César Farias, autuou o governador do Acre (cobrando R$ 70 milhões aos maganos do pedaço) e o senador Gilberto Miranda e impediu que o tucanato fechasse um divino acordo eleitoral com o bispado da Igreja Universal (multada em coisa como R$ 100 milhões).
A tunga nada tem de emergencial. Ela castra a Receita para todo o tempo. Tira-lhe a autonomia e coloca nas mãos dos burocratas de ouvidos doces o controle dos recursos para o treinamento e as operações dos fiscais. Bastará um "não" na hora de liberar uma verba para que se impeça algo como a "Operação Olimpo".
Ela foi uma blitz conduzida por cerca de 100 auditores, entre setembro e outubro, em Bauru, Sorocaba e oito municípios vizinhos. Varejaram a área e arrecadaram, em dinheiro, R$ 1,5 milhão (três vezes o custo da operação). Lançaram autuações que vão a R$ 26 milhões. Em novembro, a arrecadação na área aumentou em cerca de 25%. A coleta de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica de Sorocaba cresceu 50%. Deu tão certo que alguns comerciantes de Botucatu protestaram fechando as portas.
O pacote foi usado como pretexto para uma verdadeira contra-revolução administrativa na Receita. Dois dos pais do pacote, o ministro Pedro Malan e seu secretário-executivo, Pedro Parente, já trabalharam no Fundo Monetário Internacional. Lá aprenderam as virtudes da cobrança de impostos e as vantagens da autonomia de quem o arrecada. Aprenderam também que o governo trabalha melhor quando cobra de quem não paga, em vez de tungar assalariados inertes, sangrados na folha de pagamento. Aprenderam, mas esqueceram.

Mero registro
Para a cronologia do reinado.
O ligeiro mal-estar que FFHH sofreu em Londres na quarta-feira foi o segundo em quatro meses.
O primeiro se deu no domingo, 3 de agosto, na estação seca de Brasília.
Na sua própria lembrança, FFHH acabara de regressar à cidade e sentou-se para cortar o cabelo. Ao levantar, sentiu uma tonteira. Pensou que tinha febre e chamou o médico. Mediram-lhe a temperatura e a pressão. Estava tudo nos conformes, e no dia seguinte preferiu repousar.

Boa poesia
Deve-se à professora Iumna Simon, da Universidade de São Paulo, a revelação de um ótimo livro de poemas. Chama-se "Bundo", é do capixaba Valdo Motta, de 38 anos, e foi editado pela Universidade de Campinas.
Profano, herético e místico, Motta pega pesado. Uma releitura do título já informa por onde anda o centro do universo lírico do autor, um militante da cultura negra e dos movimentos de homossexuais, já cansado de "freges e desbundes".
Três amostras, nada representativas da pegada, mas da qualidade:
Se me encontro em perigo
ao Diabo e a Deus bendigo.
Na luta de mim comigo
quem me vence é meu amigo.
****
Eis no que deu
a Terra Prometida
por Prometeu
****
Quereis fugir
ondas em pânico?
Não há onde ir.

Banana Republic
FFHH deve recomendar ao seu embaixador em Londres, Rubens Barbosa, que trate melhor os alunos da London School of Economics.
Em meados de outubro, o embaixador Barbosa deu uma palestra para cerca de 60 estudantes. Deixou a moçada esperando por quase meia hora na sala D-302, mas deixa pra lá.
Na fase das perguntas, um estudante quis saber porque o Brasil relutava em entrar para a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, enquanto os países centro-americanos estavam ansiosos por aderir.
"Basta você acenar com uma cenoura para esses países, que eles correm para pegar", respondeu o embaixador.
Um estudante retirou-se da sala. Não foi o autor da pergunta, que era de origem centro-americana.

Jean, deixa "aquele moço", o KBE, em paz
Jean Havelange fez mais uma com "aquele moço". Barrou-o da comitiva da FIFA na cerimônia de sorteio das chaves da Copa do Mundo. Fez isso dois dias depois de ele ter sido feito cavaleiro da Ordem do Império Britânico (Knight of the British Empire). Tudo bem. Ele era o dono da festa e não gosta do moço. Assim como o Fluminense tinha seus critérios para definir o acesso dos balipodistas aos eventos de seu quadro social, Jean, com critérios diversos, ainda que desconhecidos, decide quem convida e quem barra.
É o caso de examinar, como curiosidade histórica e eventual informação para esse Brasil de hoje, o que foi o Brasil dos dois.
"Aquele moço" nasceu negro e pobre. Dedicou-se a uma atividade privada, o futebol. Dependeu sempre do suor do próprio corpo. Seu desempenho foi público e transparente, em jogos realizados diante de patuléia, que neles vê o que neles acontece. Em 1958, quando a palavra globalização era apenas um polissílabo, Pelé trouxe para o Brasil a Copa do Mundo. Tornou-se rei num negócio em que não há governo.
Por pura ficção, imagine-se que "aquele moço" fosse ruim de bola, tivesse acabado como motorista de ônibus e, pelo talento, quisesse montar uma empresa de transportes, sonhando com seus carros na linha Rio-São Paulo. Não ia dar certo. Por quê? Por causa da "herança escravocrata", como diria o tucanato.
E o que é "herança escravocrata"? É muita coisa, inclusive Jean, um nadador de segunda, enturmado, trabalhador e tenaz. Ele é um dos donos da Viação Cometa (US$ 13 milhões de lucro no ano passado), que tem um belo naco do cartel denominado Ponte Rodoviária Rio-São Paulo. Sua empresa funciona direito. Por que "aquele moço" não poderia concorrer com ela? Porque a "herança escravocrata" não deixa. Só pode operar quem tem concessão. Há 2.200 linhas interestaduais no Brasil. Nenhuma tem concessão. Desde os anos 40, funcionam todas pela graça real, que lhes reserva o mercado. Hoje, menos de 20 empresas controlam mais de 80% dos transportes interestaduais. Uma tentativa de acabar com a mamata esbarrou em espertalhões do Congresso e em sentenças judiciais. Se tudo der certo, no ano que vem, a sopa começa a acabar.
"Aquele moço" não poderia disputar uma linha de ônibus porque essas coisas não se disputam no gramado da vida, diante da choldra. Disputam-se -e mantêm-se- nos corredores de Brasília. Pior: se Pelé resolvesse telefonar para Zagallo, pedindo-lhe para colocar seu genro na camisa 10 da Seleção, seria mandado ao manicômio, mas o genro de Jean, Ricardo Teixeira, reuniu méritos considerados suficientes para presidir a Confederação Brasileira de Futebol.
Coitado do Jean. A graça republicana tornou-o um próspero carreteiro, mas se porta como plebeu endinheirado. Não respeita "aquele moço" que, pela graça da Rainha Elizabeth 2ª, é agora mr. Édson Arantes do Nascimento, KBE.

Eremildo, "The Idiot", quer falar com Kandir
Eremildo é um idiota. Ele sempre se considerou subdesenvolvido, mas, desde que comprou um agasalho esportivo chinês, faz questão de ser chamado de emergente.
O idiota vai na próxima semana a Brasília para tentar convencer o ministro Antonio Kandir de que entendeu a essência do "Custo Brasil" e para oferecer-lhe um novo curso para sua carreira política. Isso porque descobriu o seguinte no Pacote 51:
* Quando um brasileiro viajar para o exterior, terá que pagar US$ 36. Estrangeiro paga US$ 18.
* Quando um carro importado entrar no Brasil, seu IPI será pelo menos R$ 1.200 mais barato do que aquele cobrado de outro carro, produzido por trabalhadores brasileiros (noves fora os 10 mil que a Volks quer globalizar.)
* Os lucros das aplicações dos brasileiros em papéis de renda fixa serão taxadas em 20%. Os dos estrangeiros, em 15%.
* Na Bolsa, os estrangeiros não pagam imposto sobre o que ganham, mas os nativos pagam 10%.
* Se um estrangeiro compra no Brasil com cartão de crédito, paga pelo que comprou. Se o tapuia gasta no exterior, paga 2% a mais.
"The Idiot" sustenta que o "Custo Brasil" são os "brazilians". Acha que Kandir devia se candidatar a deputado federal pelo PSDB de Nova York.

Os papéis da matança podem virar cinzas
Em janeiro encerram-se os trabalhos regulares da Comissão dos Desaparecidos criada pelo Ministério da Justiça para fechar a conta das vítimas da ditadura militar. Ela cuidou dos processos de 363 pessoas e, com a ajuda dos parentes, reuniu perto de 5.000 documentos vindos de fontes que jamais se juntariam sem o interesse dos advogados e dos familiares das vítimas.
Se ninguém descobrir uma maneira de preservar essa documentação de forma que seja mantida a sua unidade, os papéis vão para o arquivo do Ministério da Justiça. Lá, correm o risco de acabar incinerados.
Será uma pena, porque de um lado perde-se o pouco que se descobriu. De outro, enquanto o Centro de Informações do Exército não divulgar o que guarda, desconhece-se o que sempre se continua escondendo.
Há indicações de que nas estantes do CIE existe até uma história detalhada dos choques e matanças. Por exemplo: o diário do guerrilheiro Osvaldão, que morreu no Araguaia. Em 1974 o general João Batista Figueiredo revelou (em segredo) que ele existia, achado num oco de árvore, mas nunca mais se ouviu falar do assunto.

João Guilherme Vargas Neto
(56 anos, diretor da empresa de consultoria sindical Oboré.)
*
- Como é que vai acabar essa crise da demissão de 10 mil trabalhadores da Volkswagen?
- Se acabar de acordo com a estratégia da empresa, produzirá um resultado aterrorizante. A política da Volkswagen arrisca afetar 1 milhão de cidadãos. Isso é a cristalização de um processo iniciado em 1990. Os setores de calçados, têxteis e autopeças foram sangrados. Mais da metade de seus empregos acabaram. O governo chama isso é de "destruição criadora". Não é. As demissões de engenheiros com carteira assinada estão 50% acima das demissões dos trabalhadores registrados em geral. O que há aí é uma destruição destruidora. Só não destrói nem afeta, porque afaga, o capital especulativo, o Brasil dos papeleiros. O padrão de negociações dentro do sistema industrial está deteriorado, e é por isso que uma empresa como a Volkswagen sente-se forte para fazer o que pretende.
- O que vem a ser deterioração do padrão de negociação?
- É a política do escalpo. Pela primeira vez, desde 1965, os trabalhadores foram para as negociações salariais sem um mínimo de reajuste garantido por lei. Resultado: metade das categorias saíram com os salários reduzidos, com reajustes inferiores à inflação. Na outra ponta, se você mede as greves de 1997, elas ficaram 30% abaixo das de 1996. Desde 1979 não acontecia isso. A corda está arrebentando do lado mais fraco, e o movimento sindical precisará de muita resistência, unidade de ação e astúcia. Se continuar a politicagem, o partidarismo e a malandragem eleitoral, as perdas prosseguirão.
- Como o senhor acha que será o ano de 1998?
- Para o movimento sindical, difícil. Terá muita dificuldade para ganhar e muita facilidade para perder. Quem entrar pensando num jogo de ganha ou perde, sem olhar para a negociação, poderá se arrepender. Um ano que terá tudo para produzir greves inesquecíveis, daquelas que o lado perdedor não gostará de relembrar. O problema é que não posso lhe dizer quem vai ganhar, porque não sei. Para o governo, será um ano arriscado. Sua retórica é a das fantasias neotrabalhistas, privilegiando as contrações e o mercado informal. Ele vê o trabalhador de macacão como um dinossauro. Eu acho que o governo está fazendo um jogo perigoso. Está abalando a racionalidade da aliança dos trabalhadores com a estabilidade da moeda. Parece que estamos na história em que o padre pergunta aos fiéis: "Quem quer ir para o céu?" Todos levantam a mão. Depois ele pergunta: "E quem quer ir para o céu amanhã?" Você quer?

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