São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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A aula inaugural de Clarice

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na história da literatura brasileira, Clarice Lispector inaugura tardiamente a possibilidade de uma ficção que, sem depender do desenvolvimento circunstanciado e complexo de uma trama novelesca oitocentista, consegue alcançar a condição de excelência atribuída pelos especialistas. No cânone da literatura brasileira, essa trama novelesca, por sua vez, aludia direta ou indiretamente a um acontecimento da formação colonial e do desenvolvimento nacional.
Na boa literatura brasileira anterior à Clarice, ou melhor, na literatura brasileira assumidamente boa anterior à Clarice, a caracterização e o desenvolvimento dos personagens e a trama novelesca que os metabolizava eram envolvidos, direta ou indiretamente, pelo acontecimento e dele refluíam ou a ele confluíam, como afluentes que ganham significado pelo sentido que lhes é emprestado pelo caudal do rio aonde eles deságuam. Em outras palavras: o sentido e o valor da trama novelesca não estão exclusivamente nela, são-lhe conferidos pela crítica literária, devidamente instruída pelo curso interpretativo da história brasileira no âmbito da civilização ocidental.
A consciência de nacionalidade, afirmava Machado de Assis no mais audacioso passo anterior ao de Clarice, não está obrigatoriamente na cultura indígena, nos muitos nomes de flores ou aves do país, não está ainda obrigatoriamente nas obras que tratam de assunto local. Deduz-se do seu raciocínio, expresso no ensaio "Instinto de Nacionalidade" (1872), que a obra teatral de Shakespeare estaria para a literatura inglesa assim como as obras brasileiras com consciência de sua nacionalidade deveriam estar, paradoxalmente, para Shakespeare. O momento de maturidade para a literatura brasileira seria o da sua entrada no círculo vicioso da universalidade eurocêntrica.
Nas histórias da literatura brasileira, a trama novelesca que não era passível de ser absorvida pela auréola interpretativa do acontecimento era jogada na lata de lixo da história como sentimental ou condenável. Caracterizar algo como sentimental ou condenável significava querer demonstrar que o compromisso do texto ficcional não era com a interpretação do acontecimento propriamente dito, mas com certa emoção privada que estava sendo desnudada pela escrita e, em seguida, entregue em letra impressa ao público. Em célebre artigo datado de 1943, na verdade resenha do romance "Perto do Coração Selvagem", hoje na coletânea "Vários Escritos", Antonio Candido afirmava que Clarice "procura criar um mundo partindo das suas 'próprias emoções', da sua 'própria capacidade de interpretação' (grifos nossos)". Por isso, continuava ele, a romancista descartava, na caracterização e desenvolvimento da personagem Joana, um tratamento puramente empírico do conhecimento, para afirmar que a sua criatura "reputava bem desprezíveis os argumentos dos sentidos, aos quais sobrepunha a visão mágica da existência". Numa tarefa arqueológica, o fundamento dito literário da prosa de Clarice -"a visão mágica da existência"- só poderia ser encontrado na chamada literatura sentimental. Talvez seja por isso que Candido, no já citado artigo, detectava no romance de estréia da autora o que nele sobressaía, ou seja, um "tom mais ou menos raro em nossa literatura moderna, já qualificada de 'ingenuamente naturalista', por um crítico de valor".
Nos anos 40, Clarice Lispector dá as costas ao que tinha sido construído, a duras penas pelos colonos e os brasileiros, como instinto e/ou consciência de nacionalidade. Dá as costas à "tradição afortunada", para guardar a expressão a que Afrânio Coutinho deu título de cidadania a partir da compilação feita por ele de inumeráveis e sucessivos exemplos tomados da cultura brasileira. Clarice inaugura uma tradição sem fortuna, desafortunada, feminina e, por ricochete, subalterna. Para que alcançasse a plena condição de excelência, no auge da "ingenuidade naturalista" dos anos 30 e 40, a proposta subalterna, tardia e solitária da escrita ficcional de Clarice teve de se travestir, três décadas mais tarde, pelo que ela negava.
Em vida da autora, seu romance mais famoso acabou sendo "A Hora da Estrela". Hoje, ele pode ser lido -sobretudo se o for com o respaldo da adaptação cinematográfica que o transformou numa espécie de "vidas secas" do asfalto- como a mais alta traição ao que a autora tinha inaugurado na literatura brasileira, mas pode também ser dado como uma gargalhada na cara da tradição afortunada, gargalhada que diz: "Eu também posso fazer o que vocês fazem, basta mascarar-me com o rosto masculino do narrador Rodrigo S.M. (1)". Um dos possíveis títulos para esse romance ratifica essa gargalhada: "Saída Discreta pela Porta dos Fundos". A lucidez zombeteira de Clarice está também neste outro possível título para o mesmo romance: "História Lacrimogênica de Cordel".
A trama novelesca de Clarice não reflui da, nem conflui para a história literária escrita em moldes oitocentistas, para a história como entendida naquele contexto. É um rio que inaugura o seu próprio curso. A literatura é literatura -eis a fórmula mais simples e mais enigmática para apreender o sentido da aula inaugural de Clarice. É o que também nos informa, de maneira indireta e metafórica, a epígrafe de "Água Viva", de autoria do crítico de arte Michel Seuphor: "Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura -o objeto- que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito". A literatura de Clarice, na sua radicalidade inaugural, se alimenta da palavra, é "um mergulho na matéria da palavra", ou seja, ela está na capacidade que tem a palavra de se suceder a uma outra palavra, sem a necessidade de buscar um suporte alheio ao corpo das próprias palavras que se sucedem em espaçamento. Basta-lhe o suporte da sintaxe. Lê-se no conto "Devaneio e Embriaguez duma Rapariga": "Olhava ao redor, paciente, obediente. Aí, palavras, objetos do quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e maçantes que quem souber ler lerá". A prosa inaugural de Clarice, escrita de "frases turvas e maçantes", exige um novo leitor -"quem souber ler lerá".
Roberto Schwarz, em artigo de 1959, hoje na coletânea "A Sereia e o Desconfiado", é quem melhor traduz tanto as medidas que a teoria do romance tem de tomar, quanto os ajustes por que a crítica literária deve passar para que o velho leitor da literatura realista se transformasse no novo leitor, afinado com a prosa inaugural de Clarice Lispector. Toma ele uma série de precauções analíticas iniciais para reafirmar, no decorrer do artigo, que permanece um fervoroso admirador da literatura realista. Assim, o elogio emocionado de "Perto do Coração Selvagem" se faz acompanhar sempre da aspereza e intransigência luckasiana na notação dos "detalhes críticos". Abstraídos estes, conclui o velho leitor jovem, o romance de Clarice seria apenas uma "iluminadora reflexão artística sobre a condição humana". Vale a pena perseguir a ânsia do leitor que, frente ao objeto insólito, quer se renovar, para em seguida observar como o crítico de formação marxista reganha segurança à medida que pisa fundo em solo ficcional brasileiro nada propício à repetição do cânone realista imposto pelo romance oitocentista europeu.
Com a ajuda de observações tomadas ao poeta e ensaísta alemão Gottfried Benn, Schwarz detecta primeiro que, na arte ficcional contemporânea, o romance vinha sofrendo um golpe de morte. Observa esse golpe na passagem do modo narrativo oitocentista para o modo existencial moderno. Diz ele que, no modo existencial, "a construção de engrenagens literárias mais ou menos complicadas perde (...) a sua importância em face do mergulho às raízes e fontes de nossa humanidade". No modo existencial, continua ele, estava implícita "a noção de um substrato humano essencial, alheio à complicação novelesca e muito mais importante do que ela". As essências, acrescenta com a ajuda de Lukács, são "inenarráveis, já que não se modificam nem têm gênese".
Não há mais romance, não há mais personagem. Por isso, pergunta Schwarz, ecoando Gottfried Benn: "Por que inventar pessoas, nomes, relações -logo agora, quando perderam a sua importância?". O personagem clássico, que emprestava biografia e sentido ao romance, estava cedendo o lugar a um outro tipo de personagem, que ganhava corpo e voz através da "iluminação do substrato humano essencial que é alheio à complicação novelesca e muito mais importante do que ela". Não é de estranhar que o crítico brasileiro venha a cair na armadilha de gênero que monta com astúcia. Assim sendo, conclui que, para a missão da literatura como a concebe Clarice, o poema está mais aparelhado do que a história narrada. No momento agônico por que passa a arte do romance no século 20, o modo lírico, descritivo, se sobrepõe ao modo épico, narrativo. A modalidade de representação simbólico-descritiva apenas transmite um modo estático e contemplativo de olhar a vida e a experiência. Vale dizer que, com experimentos similares aos de Clarice, o romance ou tinha perdido as características fundamentais de gênero, ou tinha entrado em franca decadência.
Assinala em seguida Schwarz que o romance de Clarice relata ao leitor a experiência de solidão do personagem Joana que, por ser transcrita de modo repetido e idêntico, não é histórica. Esclarece ele: o romance na verdade "micro-relata os momentos" em que aquela experiência se manifesta mais plenamente. Nesse sentido, em "Perto do Coração Selvagem", "enredo e decurso (e portanto o tempo) ficam reduzidos à função de criar uma inútil (sic) coerência entre momentos, entre os raros momentos essenciais em que o substrato (humano) transpareceria no mundo empírico". No raciocínio de Schwarz, a armadilha de tempo se soma à já mencionada armadilha de gênero. "Perto do Coração Selvagem", sem ser romance, poderia ser poema; sem ser prosa narrativa, poderia ser prosa fragmentada.
Nesse momento do raciocínio, Schwarz é obrigado a confessar que não é partidário (sic) das colocações de Gottfried Benn, apesar de tê-las avançado desde a primeira linha do ensaio. Foi levado a acatá-las para poder compreender de maneira adequada -precisa ele- não a "qualidade" da obra de Clarice, mas a sua "ambição". A generosidade crítica que Schwarz demonstra para com o texto inaugural de Clarice não visa à análise qualitativa da obra, ela é antes o pretexto para uma série de reticências valorativas em torno das ambições de uma obra romanesca na qual os episódios não se ordenam segundo um necessário princípio temporal. Os episódios soltos da trama novelesca interagem por acúmulo e insistência. Sua estruturação se dá por um jogo de "contraposições estanques". Dessa forma é que o leitor Schwarz chega a demonstrar no relato romanesco de Clarice o "desaparecer do tempo como fonte de modificação".
Schwarz insiste na tecla. Depois de analisada a complexa estrutura temporal do romance, opta por reafirmar pela inutilidade da instrumentalização das categorias temporais na organização da trama pela romancista, concluindo, uma vez mais, que "o tempo inexiste como possibilidade de evolução". E uma vez mais conclui pela nota decepcionante: "Mesmo o espaço de tempo assim marcado, entretanto, não tem função histórica". E insiste mais adiante: "O tempo comparece (na estruturação do romance) para melhor se anular".

Continua à pág. 5-13

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