São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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A aula inaugural de Clarice

SILVIANO SANTIAGO

Clarice erige o lugar da solidão como o laboratório experimental em que se pode melhor trabalhar as injustiças da sociedade contemporânea

Continuação da pág. 5-12

A materialização do tempo em história, segundo as convenções do romance realista, leva Schwarz a impor a forma biográfica como único modelo correto para a trama novelesca de "Perto do Coração Selvagem". Clarice Lispector não tinha dado ouvidos ao crítico, não o tinha obedecido, por isso compete a ele constatar: "Os momentos psicológicos, construídos cada qual a partir de seus elementos mínimos, não podem se inserir num desenvolvimento de cunho histórico e não podem constituir, portanto, uma biografia". O referencial luckasiano de Schwarz, cerceante da modernidade do projeto de Clarice e da liberdade de criação do artista, é facilmente comprovável. A propósito, leia-se a síntese feita por Fredric Jameson, em "Marxismo e Forma", ao expor a valorização da narração em detrimento da descrição no pensamento de Lukács: "A forma realista de representação, a possibilidade de narração mesma, está presente somente naqueles momentos históricos em que a vida humana pode ser apreendida em termos de confrontações e dramas individuais e concretos, nos quais uma verdade fundamental da vida pode ser contada através da história individual (grifo nosso)". A "ambição" de Clarice, para retomar a palavra desconfiada do crítico frente à sereia, afirma-se e se esboroa diante da exigência para a personagem Joana de uma trama novelesca biográfica, caracteristicamente oitocentista.
Clarice e a História
A ambição de Clarice Lispector é outra, a qualidade da sua obra é outra. Quis ela inaugurar uma outra concepção de tempo para o romance (vale dizer de história, ou seja, de transformação e evolução do personagem): a do tempo atomizado e, concomitantemente, espacializado. Não há dúvida que o "momento", "os raros momentos essenciais" (para retomar as categorias avançadas por Schwarz) estão dramatizados na ficção de Clarice. Podem, por isso, ser compreendidos e interpretados como partículas aparentemente privilegiadas e imóveis do presente. Nas páginas de abertura de "Água Viva", pergunta a narradora: "Meu tema é o instante?", para em seguida responder: "Meu tema de vida". E continua: "Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos -só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim".
No entanto, o momento, os raros momentos essenciais devem ser também e principalmente compreendidos e interpretados na fatalidade do seu devir, quando deslinearmente se articulam para se sobrecarregarem de força utópica. Escreve Clarice: "Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar". E ainda: "Aquilo que ainda vai ser depois -é agora". A romancista é alguém que, como está escrito em "Água Viva", "fabrica o futuro como uma aranha diligente". Clarice inaugura a possibilidade de se escrever ficção a partir da temporalização espacializada do quase nada cotidiano. É possível fazer boa literatura, segundo a palavra esclarecedora de Roberto Corrêa dos Santos, desenhando "uma cartografia de estados, sensações, descobertas". Não se trata de compor -esclareça-se- uma espécie formal de "confidência", como a romancista seguidamente nos alerta em "Água Viva".
O rechaço do conceito de tempo como evolução linear, em infinita ascensão, leva Clarice a rejeitar, como veremos no final, uma concepção de progresso técnica, quantitativa, e a favorecer uma concepção humanitária, qualitativa de progresso -para usar a dicotomia levantada por Herbert Marcuse no extraordinário ensaio intitulado "A Idéia de Progresso à Luz da Psicanálise" (2). Na perspectiva do tempo vivido linearmente, informa Marcuse, só a experiência do trabalho, tal como definido pela ciência, é humana. Como consequência, "o tempo cheio, a durée da satisfação, a durée do progresso individual, o tempo como repouso, só são concebidos de uma forma sobre-humana ou subhumana". Clarice concebe-os inauguralmente como humanos. Nos seus escritos, a durée da satisfação não coincide com a felicidade eterna, a que só é possível aceder depois do desaparecimento do homem na terra. Ela não coincide tampouco com o desejo de eternização do momento instantâneo de felicidade, sempre julgado como algo de inumano ou anti-humano.
Nesse sentido, torna-se imperioso rever, com a ajuda da própria Clarice, o que a crítica convencionou chamar de momento. O momento é o "instante-já" do cotidiano. Como se lê em "Água Viva", "o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago" (Reparem como os verbos intransitivos acender e apagar, ao se repetirem, transformam-se em verbos pronominais para, logo em seguida, voltarem a ser intransitivos. Temos aí a passagem do conceito metaforizado de instante-já para a experiência subjetiva da personagem e desta para a sua exteriorização objetiva).
Reduzir o atrito da roda do automóvel contra o tempo "biográfico" do personagem ao movimento do girar da roda sobre ela mesma, do girar em falso por falta de solo concreto e firme, é necessário e insuficiente. Esse atrito é principalmente a razão para uma viagem do corpo ao futuro, para moldar a este e deixar-se moldar por ele. A razão para trazer o futuro para a vida presente, a razão para levar a vida presente para o futuro. A razão de um modelo para a utopia nossa de todos os dias onde a palavra reconstrói a magia do instante presente e com vistas ao próprio devir feliz dela.
A essa dupla inserção do corpo "biográfico" no tempo romanesco, momento de plenitude do corpo, Clarice dá o nome de "beatitude". Como sempre, é preciso tomar cuidado na compreensão de vocábulo revestido de fortes camadas religiosas. Ao sentido dicionarizado da palavra beatitude, que fala do gozo da alma em contemplação mística, Clarice opõe a concretude do cotidiano como lugar da experiência. Esclarece ela: "(Quando em estado de beatitude), eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro".
A mesma imagem do pirilampo, praticamente com o mesmo sentido, aparece nas "Primeiras Estórias", de Guimarães Rosa, no conto "As Margens da Alegria". Aqui, a experiência do menino que cresce ao ver a natureza destruída para nela se erguer a cidade de concreto armado do futuro, o espanto do menino que amadurece ao descobrir no quintal a beleza diurna do peru que, para servir de sustento para a família, tinha virado uma cabeça noturna degolada, uma carniça que estava sendo bicada por um igual, a experiência e o espanto do menino, retomemos, diante do modo como o trabalho do homem transforma a natureza para constituí-lo como mundo sensível encontra o seu correlato objetivo no piscar do vaga-lume que vem das trevas da noite.
Como Clarice, Guimarães Rosa busca dramatizar na ficção a situação negativa da experiência para nela, primeiro, introduzir o valor positivo da vida e para dela, em seguida, extraí-lo enriquecido e explosivo. Clarice e Rosa sabem, como Ernst Bloch, que "o horror e as emoções negativas são infinitamente preciosos na medida em que também constituem modalidades daquele espanto ontológico elementar que é a nossa forma mais concreta de consciência do futuro latente em nós e nas coisas".
Nos anos 40, surge no horizonte crítico da literatura brasileira uma Clarice Lispector mais próxima do seu contemporâneo Guimarães Rosa. Surge no horizonte crítico cosmopolita uma Clarice menos próxima de Lukács, mais próxima de Ernst Bloch, que via na filosofia, segundo as palavras de Fredric Jameson em "Marxismo e Forma", a possibilidade de "uma elaboração concreta do espanto (grifo nosso) que sentimos diante do próprio mundo". E o crítico acrescenta em seguida: "O que espanta (...) não é o ser propriamente, mas a latência do vir-a-ser em ação, os sinais e a prefiguração do ser futuro". Continua Jameson: "O real filosofar (para Bloch) começa em casa, bem abaixo das abstrações oficiais da tradição metafísica, na própria experiência vivida e nos menores detalhes, no corpo e em suas sensações, nas próprias fontes da palavra enquanto esta vem a ser". Escreve em eco Clarice: "Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula". Em Ernst Bloch e Clarice Lispector a figuração de uma felicidade campesina: "A felicidade finita da janela iluminada nos campos, no retorno da terra arada, do descanso após o trabalho como símbolo e figura, a seu modo, da satisfação humana". Retomando Marcuse, a durée da satisfação é concebida como humana, demasiadamente humana, tanto em Bloch quanto em Clarice.
Na ficção de Clarice, desejo de apreender, pelas palavras, o espanto do personagem diante do "acontecimento" e, pelo micro-relato deste, o consequente arrepio ou grito. Desejo de apreender na sua materialidade viscosa o "é da coisa", como se lê ainda em "Água Viva". Não se esquecer de que, nesse mesmo livro, a narradora nos diz que "a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é". Desejo de apreender, como veremos a seguir, o instante-já (a) como experiência imediata do personagem e (b) como objeto da literatura.
Enquanto experiência imediata do personagem, o "é da coisa" pode ser configurado a posteriori pela noção de acontecimento. De novo, é preciso tomar cuidado na compreensão do vocábulo. Clarice não rejeita a palavra acontecimento, já que ela está um pouco por toda parte nos seus textos; ela rejeita é o significado ofertado ao conceito pela historiografia oitocentista, optando pela desconstrução da sua significação. A visão que o personagem Ana tem de um cego mascando chicles, no conto "Amor", é dada a posteriori como um acontecimento. Diz o texto: "(Ana) Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava. Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento (grifo nosso) estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível..." O acontecimento em Clarice transforma o personagem, fortalecendo o indivíduo. Ele cria um antes e um depois, valoriza a um (menos hostil, menos perecível) e ao outro (mais hostil, mais perecível), acarretando uma evolução não-linear, como vimos e veremos melhor adiante, da experiência solitária na vida do personagem. À fraternidade e solidariedade dramatizadas na literatura oitocentista, Clarice erige o lugar da solidão como o laboratório experimental onde se pode melhor trabalhar as injustiças da sociedade contemporânea, envolvendo os materiais da pesquisa -homens e coisas em estado de palavra- num clandestino amor.

Continua à pág. 5-14

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