São Paulo, sexta-feira, 12 de dezembro de 1997
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68

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Maio de 68 é necessário, e o desejo de causar "um abalo sísmico no real", uma obrigação. Assim diz o francês Michel Onfray, que há um mês tornou-se o filósofo do momento para a mídia de seu país, com a publicação de "Politique du Rebelle" (A Política do Rebelde).
Onfray, 38, conhecido por ter se dedicado à alimentação dos pensadores ("O Ventre do Filósofo", editora Rocco) ou a estética convertida em ética ("A Escultura de Si", editora Rocco), produz agora o primeiro trabalho político.
Seu texto redescobre a filosofia do prazer, o hedonismo. Para ele, a palavra não significa a busca egoísta do deleite, e sim um projeto revolucionário "de esquerda". Uma teoria das barricadas, baseado "no ser" e na melhoria da sociedade onde vive. E não no "ter" e na alienação pelos bens de consumo.
"Politique du Rebelle" procura uma alternativa "à ordem estabelecida". Não se trata então apenas de um ensaio, mas de um panfleto que prega o "hedonismo vigilante" e o "estetismo militante".
O livro de Onfray é uma das primeiras tentativas de reavaliação da herança de um movimento de revolta que no próximo ano comemora 30 anos.
Sua ação é acompanhada por outros herdeiros de 68, que acabam de ter novos ensaios editados no mercado brasileiro (leia textos nesta página). Em visita ao Brasil, o filósofo falou à Folha sobre os efeitos das velhas barricadas.
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Folha - O sr. é um devedor, um produto de Maio de 68 na França?
Michel Onfray - Eu não participei das barricadas do movimento. Era muito jovem, tinha apenas nove anos. Mas tudo o que escrevo hoje não seria possível sem o que foi pensado, dito e combatido em maio de 68, porque lá estavam Michel Foucault e Gilles Deleuze. Eles são os pensadores de 68.
Em 1968 ocorreu um rompimento filosófico, uma fratura metafísica em que a autoridade foi julgada e os homens puderam falar livremente, desafiando um meio filosófico reacionário e conservador, que considerava a Europa liberal e cristã a única via. Foucault e Deleuze não pensavam assim, e os hedonistas também não pensam.
Folha - O que pensam então?
Onfray - O hedonismo é a filosofia que consiste na busca do prazer. É preciso notar que não se trata de egoísmo, mas de uma filosofia que possui também uma dimensão política. Meu livro propõe um projeto de sociedade -e, por consequência, um projeto político- que se realiza no hedonismo.
Folha - É então possível atualizar o hedonismo grego?
Onfray - Sim, certamente. Há duas histórias da filosofia. Uma que é clássica, tradicional, que fala dos pré-socráticos até nossos dias, passando pelos idealistas, os espiritualistas. E há uma outra, totalmente esquecida, que não é editada, publicada, comentada; nem tem sido objeto de pesquisas no meio acadêmico.
Uma que conta a trajetória do espírito livre, libertário, em que a filosofia hedonista tem sido mais bem considerada. O que proponho hoje não é uma nova fórmula, mas a continuação dessa história.
Folha - Qual o papel desse pensamento revolucionário hoje?
Onfray - O hedonismo é uma filosofia do combate. Em todas as ocasiões e circunstâncias. Funcionaria nas greves, na Alemanha nazista; funcionaria tanto no capitalismo milionário quanto nos regimes feudais. O hedonismo é uma ética que pressupõe uma política praticável em qualquer ocasião. Pressupõe uma ética que é a política e uma política que é a ética; os dois lados de uma mesma moeda.
Folha - O que é a filosofia hedonista no cotidiano?
Onfray - A proximidade, a esperança, a união, o desejo de felicidade, a bondade. Redimensionando a vida, tornando-a maior e dotada de mais sentido. Estar disposto a viver plenamente e atento ao fato de que tudo irá desaparecer. É isso o que diz a filosofia hedonista. Ela não é dotada de uma lógica pessimista, mas trágica. O otimismo acredita no melhor de tudo, e o pessimismo, no pior. A tragédia, penso, vê a vida com a iminência da morte, do desaparecimento.
Folha - Como combinar essa ação com a Europa unificada?
Onfray - Eu não acredito nessa Europa e não acredito nesse europeu. A Europa proposta nessa unificação é uma Europa liberal, da circulação da moeda única, a Europa cristã, do catolicismo romano e do protestantismo escandinavo. Essa Europa não me interessa, mas sim a Europa mediterrânea, que não tem outro tipo de herança. Interessa-me uma Europa onde as idéias e não só moedas circulem.
Folha - E qual o cenário hoje para o hedonismo de esquerda?
Onfray - Eu não estou muito certo de que o marxismo está morto. Uma certa esquerda está morta, isso é verdade. Um marxismo representado pelo sovietismo e sua parcela mais burocrática. Já a ascensão do fascismo na Europa é causada por um certo desespero. Sobre a ideologia liberal, penso que há hoje o liberal de esquerda e o liberal de direita. O liberal de esquerda está preocupado com as questões sociais e o de direita com as questões estritamente econômicas -a circulação de capital.

"Politique du Rebelle" (ed. Grasset, 330 páginas, 134 francos) pode ser encomendado na Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275; tel. 011/231-4555).

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