São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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A revolução e a contra-revolução dos vascaínos

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

O Vasco de Edmundo e Eurico Miranda já arrumou muito mais confusão do que possa imaginar um associado da Força Jovem, organizada vascaína considerada pela polícia a mais violenta do Rio.
O Vasco conservador, avesso a mudanças, já promoveu a maior transformação que o futebol brasileiro conheceu em pouco mais de um século de vida.
O Vasco, de vocação reacionária como todos os clubes criados por comunidades imigrantes, exceto as de anarquistas italianos, já foi o que de mais revolucionário houve.
Depois da conquista em 1923 do primeiro título carioca, então o mais importante do país, por um time em que negros tiveram vez, o futebol nunca mais foi o mesmo.
Até o feito do clube do mulato Nelson Conceição, a senzala não batia bola com a casa grande.
O craque Friedenreich, mais de mil gols, filho de pai alemão e mãe negra, alisava o cabelo como o branco que sonhava ser.
Era o tempo de Robson, mestiço do Fluminense que, como precursor de Michael Jackson, suspirou: "Eu já fui preto e sei o que é isso".
Clube do subúrbio, o Vasco se reforçou com negros para derrotar o que hoje se chamaria de mauricinhos da zona sul do Rio, meninotes do soçaite que brilhavam no futebol-punhos-de-renda.
Pragmáticos, os comerciantes portugueses pagavam bicho a seus jogadores brancos, negros e mulatos. Ganharam dos branquelas e incendiaram a cidade.
Os ricos de sangue alvo racharam o futebol carioca para não perder mais dos negros, o Vasco foi isolado, mas já era tarde.
A ousadia abriu caminhos -a profissionalização dos jogadores, no início da década seguinte, foi o meio encontrado para revigorar as equipes com negros, mas mantendo-os longe dos salões.
Como funcionários, os boleiros entravam e saíam dos clubes pelo portão de serviço, sem dar de cara com fraques, longos e cartolas.
O Vasco fez escola: com os negros Domingos, Fausto e Leônidas, o Flamengo ganharia as almas da antiga capital e contaminaria os corações das províncias.
Feito universal o que era individual, o Vasco retomou a vocação dos fundadores de 1898.
Na eleição do mês passado, quando esmagou a oposição pró-clube-empresa, Miranda alardeava, apontando para a barriga: "Ser Vasco é isso, abrir o botão da camisa quando se senta".
Sem patrocínio e amadorista, o Vasco não é e não poderia ser só o totem da reação. Como um ser de dupla personalidade, mantém o gene da provocação de 1923.
Bem-sucedida fórmula de clube social, amador à antiga, é exemplo quase anacrônico a irritar os arautos da modernidade no futebol.
À beira do centenário, o Vasco segue seu destino de se contradizer a cada esquina da história.

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