São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Apartheid resiste na igreja sul-africana

Negociação para reunificação avança lentamente

RODRIGO LEITE
DA REDAÇÃO

Mais de três anos após a eleição do primeiro governo negro da África do Sul, o país ainda debate o fim do último foco institucional do apartheid -a religião. Todas as facções da Igreja Holandesa, criadas artificialmente pelo regime de segregação racial, já iniciaram negociações para a reunificação, mas o diálogo com a ala branca parece mais difícil.
"É uma tarefa para mais de 20 anos", diz o reverendo James Buys, um descendente de franceses e negros que ocupa o cargo de presidente do conselho da Igreja Reformada em Processo de União, que esteve em São Paulo na semana passada.
A Igreja Holandesa Reformada, que pertence à família da Igreja Calvinista, se tornou a religião mais importante do apartheid graças à influência dos colonos holandeses no país. Durante esse período, os religiosos brancos forneceram a sustentação "teológica" ao apartheid -por exemplo, colhiam do Antigo Testamento a referência à torre de Babel para explicar que cada povo deveria ter a sua língua, ou seja, viver separadamente.
Outro exemplo: os apóstolos, diz o Novo Testamento, tinham eventualmente o dom de pregar em várias línguas -um sinal para os religiosos brancos de que cada um deve falar a sua língua e, portanto, frequentar igrejas separadas.
Por essa razão, em 1982 a igreja do apartheid foi suspensa da Aliança Mundial das Igrejas Reformadas. Em agosto, o órgão admitiu suspender a sanção, desde que a Igreja Reformada, em seu sínodo de outubro de 1998, reveja sua posição em relação ao apartheid.
A reunificação das igrejas começou a acontecer em 1994, mesmo ano da eleição do presidente Nelson Mandela. Naquele ano, a Igreja Holandesa Reformada na África (para negros) e a Igreja Holandesa Reformada Missionária (para mestiços) se uniram.
Atualmente, elas estão em processo de incorporar o ramo que abriga fiéis de origem indiana, uma importante minoria étnica na África do Sul. O reverendo Buys diz que ainda há forte resistência à reunificação total entre os brancos, mas que ela tende a ser menor entre pastores mais jovens. "Isso me deixa otimista", diz Buys, "e é por isso que eu acho que uma reunificação vai ocorrer".
Parte da responsabilidade da igreja sul-africana no período do apartheid está sendo revista nas sessões da Comissão de Reconciliação e Verdade (comandada por um religioso, o arcebispo anglicano Desmond Tutu, Nobel da Paz de 1984).
Buys relata que vários religiosos foram à comissão se desculpar por não ter agido satisfatoriamente no combate à segregação racial no país. Os poucos que o faziam frequentemente eram presos, como aconteceu com o próprio Buys, que chegou a ser detido sem acusação formal por quase dois meses.
A comissão não tem poder punitivo, mas pode recomendar ações judiciais ou dar anistia aos implicados nos casos daquele período, tanto brancos como negros. Buys não defende, por exemplo, que a ex-primeira-dama Winnie Mandela receba anistia pelas acusações de abusos contra os direitos humanos de supostos colaboradores do regime branco.
A visita
O reverendo Buys esteve no Brasil para participar de um ato do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Ele veio relatar a situação da distribuição de terras em seu país. Buys vê semelhanças entre as estruturas fundiárias de Brasil e África do Sul, onde brancos dominam mais de 80% das terras aráveis.
Buys também usou a visita para atualizar sua visão sobre o Brasil. Ele viveu no país durante seis meses, em 1983, em um programa de intercâmbio de religiosos. Naquela época, o Brasil vivia seu processo de transição do regime militar para a democracia. "Muita coisa que eu vi naquele período eu menciono nas discussões que acontecem agora na África do Sul."

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