São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Princesas, rainhas, fetos e cadáveres

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

O anúncio da gravidez da senhora Maria da Graça Meneghel provoca apenas tédio e uma certa aversão. Explico-me antes que chovam os protestos contra o monstro insensível.
A gravidez interessa a senhora Maria da Graça, papai Szafir, parentes e apaniguados -e a ninguém mais. O problema é que mamãe quis fazer do feto um evento nacional da maior relevância.
Conseguiu, obviamente. Baby, mesmo antes de vir ao mundo, já pode ser considerado uma peça fundamental da guerra pela audiência (a qual, diga-se, os jornais têm levado demasiadamente a sério, como se algo sério estivesse em questão nessa disputa vulgar).
Por falar em monstro insensível, é difícil superar mamãe nesse quesito. Tudo o que ela faz e representa é tão postiço, tão deliberadamente submetido à lógica da autopromoção publicitária e negocista, que nem mesmo o seu filho (que, por ora, existe e não existe) consegue escapar às regras do jogo.
Anunciado em programa de auditório, confunde-se com o lançamento de mais um carnê do Papatudo. Tudo nessa história é triste, atroz e desumano. Os fãs -que repetiam o refrão "Xuxa, presta atenção, o seu bebê vai ser o orgulho da nação"- comportam-se como fascistas inocentes. Tomam a alegria pessoal de sua deusa por uma espécie de redenção coletiva; obscurecem assim por alguns instantes o horizonte limitado de suas vidas.
A lógica dessa comoção é formalmente idêntica a que se seguiu à morte de Diana. Uma é o negativo da outra. Os mesmos personagens que condenam os abusos da mídia num caso solicitam dessa mesma mídia que desça a níveis fisiológicos de invasão de privacidade no outro. Teremos isso em breve. Já estamos imaginando revistas de fofocas com fotos "científicas" do feto em formação.
O diabólico em mamãe não é que seja apenas postiça, mas sim que submeta o que há de mais íntimo e espontâneo (o sentimento de estar grávida, por exemplo) às técnicas de aliciamento de massas oriundas da publicidade. O ar de desamparo e o sorriso de vendedora, a roupinha branca com uma fenda no ventre, as frases feitas sobre a sua existência solitária, o galã a tiracolo enfeitando o auditório -tudo sugere uma cena arquitetada de forma pormenorizada.
Se há algo humano nessa história de replicantes, esse algo foi a reação da mãe de Szafir, que manifestou seu desagrado pelo fato de o filho ter sido tratado em público como um idiota biodegradável.
Dizem que as mães nunca se enganam: parece óbvio que o garanhão reprodutor foi retirado da cocheira, convocado a relinchar algumas palavras diante do Brasil e reconduzido a seu lugar de origem.
O domingão da barriga de ouro veio coroar o ano das estrelas grávidas, que já vinham funcionando como garotas-propaganda das mensagens de fim de ano da emissora. Assim como Xuxa, elas também não parecem levar muito a sério a idéia de que a intimidade familiar deveria estar de alguma forma protegida das suas atribuições profissionais.
Depois do sushi, a recondução da Globo à moral do lar surge na forma de uma nova regressão. Dificilmente há algo mais pornográfico do que essa barriga -o orgulho da nação.
*
Na semana passada, troquei a palavra "senso" por um terrível "censo". Peço desculpas aos leitores da coluna por ter violentado de forma assim cruel a nossa língua portuguesa, como diria a turma do "Casseta" macaqueando o bom professor Pasquale.

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