São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 1997
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Brasileira vive na pré-história da cidadania

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No campo, nas plantações de vagem, berinjela e tomate, o estupro acomete a vítima como tripla violência -a física, a psicológica e a econômica, que é a do desamparo total, a da mais absoluta ignorância.
A vítima do campo, a menina que engravidou aos 10 anos em Sapucaia (Rio de Janeiro), estuprada por um lavrador, chama a gravidez prematura de "estar doente".
O destino de sua "doença" -seu próprio destino de menina ou de mulher- ficou, entretanto, na mão dos homens. O juiz é homem, o padre é homem. Justiça e padre foram também violentadores, ainda que simbólicos, dos direitos e da moral da menina.
Se a lei existe, que seja cumprida com a urgência que o caso exige. E a lei existe, está no Código Penal desde 1957, rezando que o aborto em casos de estupro não pode afinal ser considerado crime.
Mas não. Demorou dias até que juiz e padre tecessem suas especulações burocráticas e religiosas. Até que juiz, padre e vítima fossem objeto do sensacionalismo da mídia. Arvoram-se direitos sobre o corpo, o útero, a vagina pequena da menina, sobre o feto com cara de boneco de plástico, olhos de boneco de plástico, pernas de boneco de plástico -o feto-boneco que ela vai gerando meio horrorizada.
O estupro agrário tem sua contrapartida no estupro urbano. Na cidade grande, é o desconforto da solidão, a humilhação, a impotência, o medo. Na cidade grande, os estupradores andam de carro -o estupro tem gosto de metal, funilaria, gasolina e asfalto.
A chamada "gangue da batida", que ataca mulheres sozinhas provocando batidas em seus carros, em São Paulo, força uma espécie de retrocesso nas liberdades civis da mulher.
Ela precisa voltar a sair acompanhada, de preferência por um homem. Volta-se a um estágio pré-feminismo que deixaria em estado de revolução as alemãs, as americanas.
O status social da mulher brasileira não pode ser determinado de acordo com seu grau de independência econômica, nem com base em seu papel social. Seu status é o das bonecas sem vontade própria.
A um sistema social injusto como o patriarcado, somem-se estruturas socioeconômicas monstruosamente injustas como as brasileiras: o resultado é que a experiência da opressão social das brasileiras só tem equivalente em países da África, ou no islamismo do Irã.
E mesmo no Irã, a despeito de costumes bárbaros como a extirpação do clitóris, a despeito da obrigatoriedade do uso de roupas seculares (sob pena da execração pública e punição com 80 açoites) -mesmo no Irã, pelo menos os xiitas têm uma identificação profunda com os vencidos, os pobres e desamparados.
A mulher brasileira é uma vencida, uma perdedora mais solitária do que tantas outras. Vive no tempo das cavernas, das sociedades pré-letradas.
Seu destino continua na mão (ou no cassetete) dos homens: da polícia dos homens, que cobrem com fardas seus pênis, seus sacos de homens.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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