São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 1997
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Clonagem, bebês de proveta e Código Civil

SANDRA STARLING

Após 13 anos perambulando pelo Senado, retornou à Câmara para votação final o projeto de lei do "novo" Código Civil. Enviado ao Congresso em 1976 pelo então presidente Geisel, essa lei corre o risco de já nascer envelhecida e caduca, incapaz de dar respostas a problemas com os quais a ordem jurídica deverá se deparar no próximo milênio. A começar pelos direitos concernentes à personalidade civil do ser humano.
A redação aprovada pelo Senado, repetindo o ultrapassado código de 1916, põe a salvo os direitos do nascituro, "desde a concepção" (art. 2º).
Esclareço que o problema que suscito não diz respeito à punição do aborto, matéria tratada em outra esfera normativa. Ele se refere à "proteção de nascituros" que não são concebidos por meio da cópula, único meio de reprodução humana conhecido quando Clóvis Bevilacqua redigiu o atual código.
Ocorre que, neste final de século, a vida do ser humano não mais se inicia apenas pelo contato do espermatozóide com o óvulo no útero da mulher.
De fato, o projeto reconhece a inseminação artificial (art. 1.603). Mas essa formulação, em si, não oferece resposta para indagações mais complexas, atinentes aos "direitos do nascituro, desde a concepção", quando o embrião humano é gerado em proveta.
Como se definiria a filiação quando, por encomenda, óvulos são retirados de uma mulher anônima, fertilizados em laboratório com espermatozóide de um doador também anônimo e implantados em uma barriga de aluguel para "venda" (não se impressione!) a um casal infértil, desejoso de ter filhos?
Como se resguardaria a esse embrião o direito de conhecer sua ascendência genética? Quem teria a guarda do nascituro? De quem se exigiria pensão? Teria havido adoção se, antes do parto, o casal se separasse? Como se definiria a sucessão hereditária? Onde estaria, no caso, o impedimento de relações incestuosas, e quais as cautelas legais para que elas não venham a ocorrer?
Embora essas questões já estejam povoando tribunais de países mais desenvolvidos, nosso Código Civil vindouro mais parece, em relação a elas, um avestruz que, ante o perigo, enfia a cabeça no buraco. Para essas situações delicadas, a nova lei não ofereceria nenhuma orientação segura.
E o que dizer dos direitos de embriões congelados, sem laços com os doadores de óvulos e espermatozóides que lhes deram origem? Fazem jus à inseminação em mulheres que não as fornecedoras dos gametas femininos de que surgem? Podem ser comprados?
É lícita a seleção eugênica do nascituro, como se o feto não passasse de uma mercadoria de catálogo, com o sexo e as cores da pele, dos olhos e dos cabelos podendo ser previamente escolhidos?
A ordem jurídica lhes resguardaria o direito à evolução em incubadeiras, sem certeza de maternidade e paternidade adotivas? Devem ser destruídos se forem rejeitados para uma inseminação artificial específica?
Os problemas não param por aí. Vale lembrar que, por clonagem, processo em que há surgimento de um novo ser sem fusão de espermatozóide e óvulo, também se chega à concepção de um novo embrião humano. E agora, José?
Ainda que a clonagem venha a ser criminalizada, dados os indesejáveis efeitos (morais, legais, éticos, ambientais) da multiplicação de seres preexistentes, a proibição em si não tem o condão de impedir que ela ocorra, assim como o Código Penal não impede o homicídio.
E, uma vez formado um feto por clonagem, quais seriam os seus direitos de nascituro, se já foi concebido? Como se definiriam suas relações de parentesco?
Sob as regras do atual e do novo código, se Robert Stillman e Jerry Hall trabalhassem no Brasil, os embriões humanos que obtiveram por clonagem, em 1993, na Universidade de Washington, não poderiam ser destruídos.
Por mais tenebrosas que pudessem ser as perspectivas, eles deveriam ser respeitados nos seus direitos de nascituros. Felizmente, essa inovação científica chegou tarde, antes que Josef Mengele, que viveu clandestinamente entre nós, pudesse ter acesso ao fantástico mundo da engenharia genética.
Para quem teve oportunidade de ler "Os Meninos do Brasil", de Ira Levin, é natural imaginar que, se o satânico cientista alemão fosse vivo, poderíamos ser compelidos a respeitar os "direitos de nascituro" de fetos arianos clonados em escala ilimitada, obtidos a partir de uma célula-matriz de alguém, por exemplo, como Adolf Hitler.

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