São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Uma pessoa entre pessoas

JANIO DE FREITAS

A velha recusa a ver na criminalidade urbana um problema social, e não apenas policial, está confrontada com mais desafios factuais, daqui e do exterior, para defender sua tese cômoda -ainda que isso lhe custe, como está acontecendo a tanta gente em São Paulo, o absurdo de não sair de casa à noite.
Parece indiscutível que o medo pânico dos paulistanos não se deve só ao risco de assalto nas ruas, decorrendo muito, também, da onda de clamor atemorizante difundida em alguns meios de comunicação.
São Paulo não se tornou mais perigosa de repente, de uma semana para outra. O que mudou num instante foi a exposição do problema, e por um motivo pouco apreciável: formas mais exóticas do assaltismo, em particular a das "gangues da batida", seduziram os jornalistas, como lhes interessa a boçalidade das cabeças raspadas na seleção, em que nem viram a violência a ser condenada.
Por exótico, o assalto da batida enfraqueceu a resistência paulistana a expor a violência da sua cidade, como fizeram com sensacionalismo maior e pior a TV Globo e os jornais cariocas em relação ao Rio. Todo risco justifica alguma dose de medo, mas antes do pânico e da clausura é preferível discutir o que está acontecendo e por que acontece. O que se dá até agora, porém, é a constatação seguida de queixa, à maneira do brilho suave de Clóvis Rossi ou do calor flamejante de Barbara Gancia.
Daqui a pouco haverá, com certeza, a constatação da coincidência entre o aumento do desemprego e o aumento do assaltismo. De Collor para cá, e de modo ininterrupto no atual governo, a indústria paulista deixou na rua 1,5 milhão de empregados, que representam uns 6 milhões de pessoas, consideradas as famílias. A essa população, equivalente a três cidades de Belo Horizonte, somam-se os desempregados pelo comércio, pelos bancos e a outra população, formada de jovens, que chega à idade de trabalhar e não consegue emprego. Em meio a todos esses, os migrantes cujo sonho de melhoria se transforma em marginalidade forçada.
Se 1% desse conjunto perder a cabeça, já é gente bastante para infernizar até uma cidade do tamanho de São Paulo. E, com aquele ou qualquer percentual, será outra coisa que acontece?
Já que a moda é globalização, suponho que um caso estrangeiro cairá bem. Os Estados Unidos encerram 97 com o sétimo ano seguido de prosperidade e, como consequência, com uma queda constante do desemprego que, em novembro, registrou seu menor índice (4,6%) nos últimos 24 anos. A curiosidade de verificar como andam as estatísticas do crime encontrará indicações eloquentes: desde o ano passado, a criminalidade está nos seus níveis mais baixos nos últimos 25 anos, ou desde que o Departamento de Justiça realiza estatísticas nacionais. Em um ano, menos 10% de crimes violentos e ainda menos 8% de crimes contra a propriedade. E menos 20% nos furtos de carros.
A visão apenas policialesca, lá também, atribui toda a queda da violência em Nova York aos rigores policiais do prefeito Giuliani, que faz escola em várias cidades. Não consta nos anais, no entanto, outro período do século em que a oferta de empregos em Nova York, de todos os níveis, seja tão abundante. O método Giuliani ajudou em NY, mas não explica o resto do país.
São infinitas as formas da violência desumana. Para um chefe de família aplicado, a violência do desemprego injusto não pode ser menor do que a sofrida por quem perde no assalto a carteira e o relógio, o carro até. Como não são menores as violências da infância miserável, da juventude condenada à marginalidade, da vida nas favelas e bairros da pobreza.
Por que esperar alguma consideração, atitudes sempre de civilidade? O que foi e é ensinado àquelas pessoas, pelos setores sociais que empregam, governam, influem e fazem os jornais, TVs e rádios, foi e é o desprezo absoluto pelo ser humano sem qualificação econômica, foi e é a crueldade em todas as suas formas objetivas e subjetivas. O assalto, o sequestro, as outras formas da violência urbana são, todos, formas variantes da crueldade e da insensibilidade aprendidas.
Para esse problema não há solução policial. O necessário é o oferecimento da oportunidade de sair da opressão, de ter alguma segurança e alguma esperança de melhoria -de se sentir gente, uma pessoa entre pessoas.

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