São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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Reações à crise

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Nunca o desenvolvimento técnico foi tão grande, nunca houve tanta prosperidade e jamais a melhoria dos padrões de vida foi tão sustentada em todos os continentes (exceto na África) quanto na segunda metade deste século que termina. Mas poucas vezes no passado recente vivemos um período de tanta incerteza -que, para uns, tem o nome de desemprego estrutural; para outros, de exclusão social ou concentração de renda; para todos, de globalização.
Essa incerteza deriva, certamente, do próprio ritmo frenético de mudança tecnológica, mas também de um fenômeno fundamental deste último quartel do século 20: a crise do Estado, ou, mais amplamente, das organizações burocráticas, tanto públicas quanto privadas -que em meados deste século tinham se transformado no referencial básico de segurança social, mas hoje não garantem mais proteção segura.
Nos anos 60 e 70, eu escrevia que o século 20 era das organizações e da nova classe média tecnoburocrática, que emergia no seio do Estado e das grandes empresas privadas. Duas ideologias, muitas vezes confundidas porque tinham a mesma origem -a da justiça social, a partir do socialismo burocrático, e a da eficiência, com base no desenvolvimento científico e na administração profissional-, serviam de referência a todos, à esquerda ou à direita.
No final dos anos 90, porém, depois de 20 anos de crise e reestruturação dessas organizações e da substancial redução das taxas de crescimento econômico em todo o mundo, exceto no leste e no sudeste da Ásia (cujos países só agora entraram em crise), a sociedade já não se sente mais segura com as organizações e não confia mais em utopias, sejam socialistas ou eficientistas.
No lugar das organizações, ressurge o mercado como mecanismo coordenador da economia e da vida social, com seu imenso dinamismo econômico, mas também com toda a sua cegueira ética e social. Em consequência, e não obstante o progresso que está ocorrendo, homens e mulheres entram em estado de ansiedade e buscam apoio em outras instituições, particularmente nas igrejas e na nação.
Daí o novo impulso recebido pelas religiões e por fundamentalismos de todos os tipos. Daí a retomada dos ideais comunitários embutidos na "nação", entendida como conjunto de indivíduos que partilham as mesmas raça, língua, religião e tradições.
Isso não significa que organização ou Estado tendam a desaparecer nem que voltaremos ao pré-capitalismo ou ao capitalismo liberal do século 19, em que a unidade de produção básica era familiar e o Estado tinha papel muito limitado na coordenação da economia e na garantia dos direitos humanos.
Para a produção de um grande número de bens e serviços, continua a não existir alternativa para as grandes organizações burocráticas; e a utopia neoliberal de um Estado mínimo, que chegou a prosperar diante da crise do Estado, está hoje superada.
As grandes organizações privadas e o Estado, principalmente nos anos 80, passaram por crises de crescimento. Foram crises cíclicas de organizações burocráticas que cresceram demais, incharam e foram capturadas pelos herdeiros dos empresários ou por grupos de burocratas ou capitalistas. Eles passaram a se preocupar em tirar vantagens da organização privada ou do Estado, em vez de bem administrar.
Essas crises obrigaram, e continuam a obrigar, as organizações a se reestruturar, diminuir seu tamanho por algum tempo, demitir funcionários excedentes, rever sua missão, concentrar seu foco de atenção.
A reestruturação de grandes empresas, como a IBM ou a General Motors, foi mais rápida e mais simples do que a do Estado, que assumiu, nos anos 90, o nome de reforma do Estado.
O problema da grande empresa, ao se reestruturar, é o de se adaptar às novas realidades do mercado e da sociedade. O desafio enfrentado pelo Estado é bem maior: além de recuperar sua governança -ou seja, sua capacidade fiscal e administrativa-, é sua função orientar e regular aquelas novas realidades.
O desemprego friccional, causado pela mudança tecnológica alucinante, é, embora transitório, problema do Estado; os processos de concentração de renda e de exclusão social -causados principalmente pelo mesmo desenvolvimento tecnológico, que aumentou a demanda de mão-de-obra qualificada em detrimento da não qualificada- são também problemas do Estado.
A globalização, vista como expansão sem precedentes do papel do mercado na coordenação da economia mundial, com prejuízo para a capacidade regulatória do Estado, é um desafio cuja solução se espera desse mesmo Estado que se quer reformar ou reconstruir.
Se essa análise for correta, o recurso ao fundamentalismo religioso ou ao nacionalismo, adotado pelos setores mais frágeis e pobres da sociedade, e a crença sem limites na potencialidade do mercado, que os setores mais fortes e ricos adotaram principalmente nos anos 90, não representam uma tendência, mas se constituem em reação à crise cíclica da organização.
Reação às vezes puramente irracional, porque pretende a volta ao passado; às vezes regeneradora, na medida em que estabelece os limites da capacidade coordenadora das organizações e relembra o papel fundamental que desempenham, de um lado, o mercado e, de outro, os valores éticos duramente construídos pela sociedade.
Vivemos, sim, um tempo mais inseguro. O mercado nunca deu segurança a ninguém, e as garantias oferecidas pela nação e pela religião, da mesma forma que pela organização e pelo Estado, são muito relativas em um mundo em mudança tão rápida.
É importante, entretanto, dar-se conta de que toda essa insegurança é produto de um processo de crescimento, não de retrocesso. Por isso mesmo, levará, afinal, não só a melhores padrões de vida -como já vem ocorrendo-, mas, por meio da reforma do Estado e das organizações, à reconquista da segurança em um nível mais elevado.

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