São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Quem tem medo de Cavalcanti

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alberto Cavalcanti (1897-1982), o primeiro cineasta nascido no Brasil a garantir posto cativo na história do cinema, tem silenciosamente celebrado nesta semana seu centenário de nascimento. Nenhuma grande retrospectiva, nem sinal da obrigatória biografia, nada de simpósio, nem mesmo um "site" na Internet. Reafirma-se Cavalcanti, assim, como um desconhecido no próprio país. Não há justificativa -exceto preconceito, descaso e covardia.
Ninguém arriscou ainda uma interpretação global da esfinge Cavalcanti, por mais que os estudos cinematográficos no Brasil tenham conhecido inequívoco desenvolvimento na década e meia que nos separa de sua morte. Uma teia de estigmas repousa sobre sua vida e obra, mal arranhada pelo bom catálogo dedicado a Cavalcanti pelo Festival de Locarno em 1988 (Lorenzo Pellizzari e Claudio M. Valentinetti, organizadores; edição brasileira: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995).
Pior do que ter sido cineasta pioneiro num país arrogantemente beletrista, Cavalcanti foi um solteirão cosmopolita e eclético. A combinação era por demais explosiva para o Brasil arcaico e provinciano que o gerou -e, como reconheceu até Glauber, o expulsou.
É bom começar pelo mais íntimo e delicado dos estigmas. Não se pode subestimar a força do preconceito no Brasil machista e patriarcal em que nasceu e cresceu Cavalcanti. Se um artista da dimensão e do reconhecimento de Mário de Andrade, quase contemporâneo do cineasta, fez por bem camuflar suas preferências sexuais até para muito além de sua morte, enchendo de desconforto mesmos os marioandradinos de devoção, o que esperar de um jovem sensível de origem burguesa e nordestina, de pai militar e positivista, que além de tudo trocaria profissões "nobres" como direito e arquitetura para dedicar-se ao cinema, um ofício visto como pouco mais que diversão da patuléia na primeira metade do século? Pois Cavalcanti jamais cederia à hipocrisia social, escorado sempre por dona Ana Olinda, a supermãe protetora, mesmo quando as más línguas insistiam em desafiar sua autoridade de diretor de estúdio na Cinecittá tropical batizada de Vera Cruz.
"Eterno estrangeiro, Cavalcanti viaja de um lado para outro do Atlântico, incapaz de se fixar." Mais uma vez acertava na mosca o diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois. "Onde fica a pátria deste homem que o Brasil não reconhece como um de seus filhos? Como poderemos encontrá-la, onde localizá-la?", continua Langlois. "E como explicar o fato de que em qualquer lugar onde o encontremos seu trabalho é parte da produção nacional, com exceção talvez do Brasil?"
Cavalcanti formou-se arquiteto na Suíça, forjou-se cineasta na Paris das vanguardas, liderou a histórica escola de documentarismo britânico, rodou na Áustria a única versão de Brecht para cinema aprovada pelo dramaturgo ("O Sr. Puntila e Seu Criado Matti", 1955), tentou manter-se à tona alternando projetos infilmados (da Romênia ao Brasil) e trabalhos de encomendas (da Itália a Israel).
Cidadão do mundo, errante por vocação, Cavalcanti prescindiu da brasilidade exótica para fazer nome nos anos 20 e 30. Ao voltar, filho pródigo, na fronteira dos anos 40-50, tentou trazer a melhor organização para a prática cinematográfica que conhecera em seu longo auto-exílio -a produção de estúdios sob a compacta forma européia. A frustração da Vera Cruz embalou nova onda xenofóbica -e o cosmopolita Cavalcanti seria o primeiro na linha de tiro. Nada mais natural que não tardasse uma nova despedida do cineasta -não a última, apenas a definitiva.
O simplismo dos verbetes foi constantemente desafiado por Cavalcanti. Ele começou como cenógrafo, tornou-se diretor, destacou-se como produtor até chefiar estúdios. Teorizava como poucos, sobretudo sobre o cinema como arte coletiva, e, convidado por Getúlio Vargas, lançou as bases da moderna política cinematográfica no Brasil.
Cavalcanti estreou ligado ao cinema impressionista francês (L'Herbier, Renoir) e assinou uma das primeiras elegias urbanas (a ode a Paris de "Rien Que Les Heures"). Voltou ao Brasil com uma chanchada política de rara força ("Simão, o Caolho"). Flertou com uma tipologia popular brasileira ("O Canto do Mar" e "Mulher de Verdade") para a seguir repudiar o naturalismo rodando um Brecht com selo de garantia.
Neste moto-contínuo, como classificar Cavalcanti? Com uma filmografia tão extensa, dispersa e irregular, como verdadeiramente conhecê-lo?
O Festival de Locarno deu sua contribuição, lá se vai quase uma década, organizando a mais exaustiva retrospectiva de que se tem notícia. Um crítico alemão-oriental, Wolfgang Klaue, também fez sua parte, preparando uma pioneira coletânea sobre Cavalcanti, que na época (1962) exercitava a versão "socialista" de seu internacionalismo.
Por aqui, o longo silêncio editorial desde o relançamento em 1976 do testamento teórico de Cavalcanti em "Filme e Realidade" (Artenova/Embrafilme) foi brevemente rompido com a tradução do citado catálogo suíço. No campo dos ciclos, no início desta década o Centro Cultural Banco do Brasil (RJ) dedicou uma ampla mostra a Cavalcanti -nada, contudo, que se comparasse à de Locarno.
Cavalcanti foi livre demais para cristalizar fama fácil. Fosse um gênio de um único filme, como Abel Gance, ou um "globe-trotter" da câmera de militância inequívoca, como Joris Ivens, não resistiriam tanto a posicioná-lo no panteão dos grandes deste século do cinema. Tivesse limitado sua atuação à era muda, nos inocentes experimentos da vanguarda parisiense, e provavelmente seria celebrado no Brasil como "nosso pioneiro internacional".
Auden, Brecht, Gide, Graham Greene e James Joyce, entre os escritores, Britten, Eisler, Jaubert e Milhaud, entre os músicos, Eisenstein, Grierson, L'Herbier, McLaren, Reiniger e Renoir, entre os cineastas, são apenas alguns dos artistas que conviveram ou colaboraram com Cavalcanti. Criadores deste porte não perdem tempo por simpatia.
É preciso estabelecer de vez: do cinema brasileiro, Cavalcanti foi uma das maiores forças -e dele, que "levava o Brasil consigo" (Jorge Amado), fomos nós sua maior fraqueza.

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