São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Combates pela independência

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O historiador inglês Brian Vale acredita que três pessoas tiveram papel crucial no processo de independência do Brasil: um português, um brasileiro e um escocês.
O português foi quem a proclamou, o príncipe Dom Pedro (1798-1834), que com isso se tornou o imperador Pedro 1º do Brasil. O brasileiro, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), se tornaria conhecido como o seu "patriarca". E o escocês, Thomas Alexander Cochrane (1775-1860), 10º conde de Dundonald, foi quem a consolidou ao derrotar as forças navais portugueses que teimavam em não reconhecer a criação do novo país.
Vale é o autor de "Independence or Death: British Sailors and Brazilian Independence, 1822-1825" (Independência ou Morte: Marinheiros Britânicos e a Independência do Brasil, 1822-1825).
É raro que um livro de história mereça ser descrito como o "relato definitivo" de algum assunto, se é que tal coisa é possível. Se for, a obra de Vale mereceria o título. Como ele disse, nessa entrevista feita por telefone, "acho que li tudo o que existe sobre o tema".
Vale pesquisou durante anos em arquivos no Brasil e no Reino Unido. A obra agora publicada estava em gestação desde os anos 60.
Apesar da participação dos marinheiros britânicos liderados por Cochrane ter sido vital para que o Brasil vencesse a guerra de independência, nunca alguém tinha pesquisado a fundo a documentação. De modo geral, os historiadores brasileiros aceitavam a versão exposta por Cochrane em suas memórias, repleta de críticas infundadas às autoridades do Primeiro Império. Curiosamente, foi necessário um pesquisador britânico para resgatar a reputação desses brasileiros.
Hoje Vale esta aplicando os mesmos métodos em outro tema mal estudado no Brasil: a guerra naval com a Argentina durante a Guerra da Cisplatina de 1825 a 1828.
*
Folha - Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre marinheiros britânicos e a independência brasileira?
Brian Vale - Muitos anos atrás, em 1965, eu tinha sido enviado ao Rio de Janeiro pelo Conselho Britânico. Eu sabia, pela minha formação em história naval, que a Marinha do Brasil tinha sido comandada por aquele estranho escocês, lorde Cochrane. E eu sabia que Cochrane tinha vivido até os 90 anos, e passado seus últimos anos escrevendo sua autobiografia. Ele escreveu quatro livros, dois sobre suas aventuras na Marinha britânica durante as guerras napoleônicas, um sobre suas aventuras no Chile e outro sobre suas aventuras no Brasil.
Cochrane era um gênio na guerra, mas essa energia intensa que o tornava bem-sucedido na guerra o tornava uma ameaça em tempo de paz. Ele brigava com todo mundo, principalmente com autoridades, e, é claro, era louco por dinheiro. Em sua idade avançada ele acreditava que todos -isto é, os governos britânico, chileno e brasileiro- lhe deviam muito dinheiro. Ele acreditava que tinha ainda pendências com todos eles, e que ele estava certo sempre.
O objetivo dos quatro livros era provar que ele estava certo e que todos lhe deviam dinheiro. Eu sabia que havia esse livro que descrevia a guerra de independência brasileira, mas eu achava que ele era provavelmente impreciso e tendencioso. Quando fui ao Brasil, minha ambição original era muito simples. Eu queria ver o que os livros de história brasileiros diziam sobre esses eventos, e talvez escrever um artigo em publicações especializadas britânicas esclarecendo a questão.
Folha - E por que levou tanto tempo para escrever o livro?
Vale - Eu descobri que havia poucos livros de história brasileiros que cobriam esse período, e mesmo esses tinham sido escrito há muito tempo, nos anos 20, 30, ou 50, e que todos usavam o livro de Cochrane como se fosse a verdade.
Folha - Quer dizer que os brasileiros na verdade não conheciam o que Cochrane fez no país.
Vale - Eles acreditavam na história de Cochrane. E não tinham provas para contradizê-la, porque muito pouca pesquisa tinha sido feita. Por isso quando eu estive no Rio de Janeiro, de 1966 a 1970, eu comecei a ler toda a correspondência do Ministério da Marinha no Arquivo Nacional, na Biblioteca da Marinha, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Eu li todo esse material brasileiro que ninguém tinha visto antes.
Folha - E por que ninguém tinha se interessado?
Vale - Há duas respostas para essa questão. Eu reparei nisso em várias partes do mundo. Os britânicos são muito interessados em história, muito bons em descobrir coisas, estudar documentos antigos. É algo que atrai a mentalidade britânica, lidar com esses assuntos práticos. Já a mentalidade continental, se posso assim chamá-la, isto é, a mentalidade acadêmica que você encontra em Portugal, na Espanha, França e também na América do Sul, é diferente. A ênfase em assuntos acadêmicos é mais intelectual, eles gostam de filosofia, que não é um assunto muito prático. Por isso de modo geral os estudos históricos não são tão desenvolvidos.
Folha - Quer dizer, estudos históricos que vão fundo na busca de documentos?
Vale - Trata-se de contar sempre a mesma história repetidas vezes, sem base em documentação detalhada. É o que acontece em muitos países no continente europeu, e é por isso que os historiadores mais importantes da Espanha são ingleses.
Folha - O inglês Charles Boxer também é um dos principais historiadores do Brasil Colonial, por exemplo.
Vale - É um tema muito comum. Mas o segundo motivo é que nessa tradição continental existe muitas vezes uma distinção entre o civil e o militar. Frequentemente a história naval e a história militar são deixadas nas mãos dos militares. Na Inglaterra a maior parte da história naval e da história militar não é produzida por soldados e almirantes, e sim escrita por acadêmicos.
Folha - Como é esse relacionamento entre acadêmicos e militares na Inglaterra? Em um livro recente, um militar britânico reclamava que os historiadores parecem mais interessados nas derrotas que nas vitórias.
Vale - Eu acho que é porque até agora a ênfase na história naval e militar britânica tem sido nas vitórias. Mas está mudando. Até cerca de 20 anos atrás tudo que se fazia era sobre lorde Nelson e as guerras napoleônicas. Era tudo o que se lia e se escrevia.
Depois, os historiadores começaram a ir mais além, estudavam o século 18, o 17, ou então o período vitoriano. Mas nesse estágio ainda estavam descrevendo batalhas, descrevendo navios em movimento. Mas nos últimos 20 anos as pessoas começaram a se interessar naquilo que tornava a Marinha uma realidade, em outras palavras, os seres humanos, o aspecto social. O que eles comiam? Como eram pagos? Como lutavam? O que pensavam? Como era o sistema de punições? E, é claro, como funcionavam os estaleiros.
Os arsenais de marinha no Reino Unido, e também no Brasil, eram enormes complexos industriais, eram as Volkswagens, as Fords do século 18. Por isso hoje na Europa, certamente no Reino Unido, existe uma visão mais equilibrada da história naval. Você estuda as vitórias, as derrotas, mas também os aspectos sociais, econômicos e a tecnologia dos navios a vela.
No caso da independência brasileira, os livros clássicos, com boas descrições gerais, já foram escritos, como Varnhagen ou Tobias Monteiro. Mas falta o estudo individual do que aconteceu precisamente.
Eu passei cinco a seis anos lendo o que havia nos arquivos brasileiros, e mais dois ou três lendo os arquivos britânicos, porque havia cônsules, almirantes, escrevendo relatórios para Londres sobre o que viam. No final desses anos todos eu tinha lido uma quantidade enorme de material, eu acho que li tudo o que existe sobre o tema. O Serviço de Documentação da Marinha, do comandante Max Justo Guedes, gostou do trabalho que eu fazia. Porque quando eu comecei a publicar meus artigos, nos anos 70, a Marinha do Brasil estava se expandindo rapidamente, comprando novos navios, submarinos, construindo também.
E uma coisa interessante sobre uma organização militar é que, para criar um futuro, é preciso relembrar o passado. A Marinha se interessou muito pelo meu trabalho, e Max me ajudou muito me enviando microfilmes de documentos.
Folha - Ele também o convidou para colaborar com a história oficial da Marinha, não?
Vale - De fato, eu escrevi três capítulos, que eu estou revisando. Um é sobre a criação da Marinha, outro é sobre a guerra de independência, outro é sobre a Confederação do Equador, a rebelião em Pernambuco em 1824. Mas no momento eu estou pesquisando a guerra entre o Brasil e a Argentina de 1825 a 1828. Eu descobri que os argentinos cobriram muito bem esse período, há muitos e muitos livros, mas a maioria é pró-Argentina e antiBrasil.
Assim como na Inglaterra se achava que Nelson nunca errava, os argentinos têm a mesma visão do almirante Guillermo Brown, William Brown, seu comandante nesse período. Ele era o caubói de chapéu branco, e os brasileiros eram os vilões de chapéu negro.
Folha - E o que de fato aconteceu nessa guerra?
Vale - Os brasileiros foram derrotados em terra, mas no mar venceram. A Marinha do Brasil era uma força experiente, tinha lutado com grande sucesso na guerra de independência, e era uma marinha maior. Inevitavelmente ela derrotaria os argentinos no Rio da Prata e destruiria o seu comércio.
Mas o problema estratégico que ela enfrentava em ter de bloquear Buenos Aires era muito difícil, dado que a água era muito rasa -e Buenos Aires era a principal base argentina. Quando havia uma batalha, os argentinos estavam próximos de ajuda, enquanto os brasileiros estavam a centenas de milhas de um porto amigo. E no começo da guerra o comandante brasileiro, um almirante português chamado Lobo, era muito tímido. Foi substituído pelo brasileiro Pinto Guedes, um descentralizador, que dividiu sua esquadra em três partes. Uma das partes foi confiada a James Norton, que teve como missão o bloqueio próximo de Buenos Aires, à vista do porto.
Norton tinha o mesmo temperamento agressivo de Brown, logo era um conflito bem interessante. E Brown foi derrotado.

Onde encomendar: "Independence or Death: British Sailors and Brazilian Independence, 1822-1825" (Tauris Academic Studies, Londres e Nova York, 220 págs., US$ 59,50), de Brian Vale, pode ser encomendado, em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio, à Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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