São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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As mutações atrozes do erotismo

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Crash - Estranhos Prazeres" é um filme atrozmente incômodo e contundente. Faz com que o tempo todo sintamos o impulso de levantar e ir embora do cinema, mas, ao mesmo tempo, fascina. Incomoda e fascina. Muito.
Fascina, porque vai sempre além do que podemos imaginar, levando ao paroxismo situações de nosso cotidiano. Fascina pela estranheza que provoca, fascina porque é um estranho jeito de fazer cinema. Só tamanho incômodo, só a firme resolução de David Cronenberg de não julgar nem propor alternativas, pode explicar que no Mais! do último domingo, dedicado ao filme, houvesse tantas recriminações, queixas, acusações.
Um filme que quer ir até as últimas consequências só pode provocar perplexidade. Boa parte dos articulistas do caderno considera que o fato de o carro ser a máquina que marca as estranhas relações no filme é algo que traria, nas palavras de Martin Amis, uma "dissonância", advinda de um deslocamento que Cronenberg teve que operar entre a data de publicação do romance de Ballard, no qual se baseou, publicado em 1973, e o mundo de hoje.
Robert Kurz afirma que "o tema 'sexo no carro', tão velhiço e tão cediço quando o tema 'sexo no escritório' (...) redunda (...) em uma nova demonstração visual do fato de que o carro é tecnicamente um espaço um tanto impróprio para o exercício de atividades sexuais". É esquisito que tomem tão ao pé da letra os carros. Parece óbvio que o filme não é sobre "tesão" em acidentes de carro ou sobre carros. O carro aí é uma alegoria de estranhas relações possíveis com o inumano tecnologizado. Alegoria interessante, pois muitos filmes já foram feitos explorando a virtualidade do mundo dos computadores ou guerras atômicas do futuro.
O estranhamento que o filme produz parece-me vir exatamente do fato de que, por meio do carro -que é um objeto que pertence ao cotidiano de todos nós-, defrontamo-nos, caricaturalmente, com modos de vida que não nos são distantes. Kurz afirma que o erótico do filme é igual ao erótico de anáguas de lã. Mas anáguas de lã podem ser extremamente sensuais, é uma questão de gosto... Aliás, Kurz escreveu o ensaio mais irritado sobre o filme. Parece ter feito um esforço para não dormir no cinema ("Façam suas apostas de quem adormecerá primeiro: os atores ou os espectadores?").
O filme, para Kurz, apenas confirmaria a "impossibilidade lógica da arte num mundo capitalista"... Parece que Kurz, além de saber o que é o verdadeiro erotismo, sabe o que "deve" ser uma arte revolucionária e transformadora. "Crash" (em cartaz em São Paulo) estaria apenas reproduzindo -e de forma inverossímil- o que já está dado na monotonia das relações alienantes do mundo contemporâneo, a "miséria das classes médias". E cobra mais realismo do filme, afirmando a improbabilidade de um dos episódios, em que um dos personagens pára em meio a um congestionamento para fotografar as vítimas. Ora, vivemos em meio a uma violência cotidiana. Poder andar pelas ruas de nossas megalópoles não é muito diferente do que o que Cronenberg mostra por meio de parábolas. E é estranho cobrar verossimilhança em um filme...
Jacques Rancière vê o filme como uma "pornoficção futurista", "versão ramificada do fim das ideologias celestes e do retorno às simples e sólidas satisfações da humanidade". Rancière faz toda uma relação entre o neoliberalismo e a pornografia. Estranha pornografia a de "Crash"... Pois o que ele nos mostra é uma busca nunca exitosa de um erotismo que necessita encontrar novos jeitos de continuar existindo. Existindo em um mundo no qual só restou explorar o corpo, já que a simbolização parece não dar conta do que vai acontecendo. Aliás, o filme pode levar, entre muitas leituras possíveis, a ver de forma redutora nos personagens apenas a realização de fantasias infantis, nas quais trombadas podem ser o equivalente de relações sexuais, em que ocorre a concretização do que depois, no mundo adulto, passa a ser só exibição de potência.
Nessa caricatura, Cronenberg mostra o descompasso entre o erógeno e a tecnologia. Mostra-nos um mundo no qual é preciso inventar estranhos rituais nos quais se encena a morte em acidentes de carro de ídolos de cinema, pois já não há mais heróis vivos. E nosso mundo contemporâneo é pobre de rituais. A revolta de Kurz, a análise de Rancière, o desapontamento de Antonio Negri... Parece que eles não puderam se lembrar de que vivemos em um mundo onde os esportes radicais são cada vez mais procurados, onde jovens fazem piercing nos lugares mais estranhos do corpo, inventam-se estranhos pactos de amor com tatuagens genitais (Guilherme de Pádua e Paula Thomaz).
O filme não faz a apologia de nada. Apenas, como apontou Cássio Starling Carlos, mergulha sem qualquer moralismo nos mistérios do corpo humano, que teima em reinventar o erógeno. Não é um filme sobre o fetichismo. Cronenberg afirmou: "Este não é um filme para pessoas que querem ver sexo e carros...".
Diferentemente de Contardo Calligaris, vi o filme e não li o romance. Talvez por isso não concorde com Antonio Negri, que fala que há em Cronenberg um orgasmo que jorra morte, enquanto em Ballard, o desejo prevaleceria sobre a morte. O que penso é que Cronenberg usou o romance de Ballard para buscar uma "psicopatologia criativa" (palavras de um dos personagens do filme).
Assim como o neurologista Oliver Sacks (de "Um Antropólogo em Marte") busca a força criativa que pode existir nas lesões do cérebro, Cronenberg usa o cinema para levar ao paroxismo a possibilidade de representação das situações patológicas em que o humano faz limite com o inumano. E, com isso, explode a própria noção de representação, transformando tudo em estranhos universos.
Questão mais do que contemporânea. Citando Cronenberg: "Se o público sair do cinema num estado emocional intenso sem conseguir defini-lo, então creio que o filme funcionou, porque conseguiu evitar todas as respostas emocionais que são clichês". O difícil parece ser, para nós todos, seres que queremos ser pensantes, suportar a perplexidade que "Crash" provoca.

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