São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Reeleição no exercício do cargo

MIGUEL REALE JÚNIOR

A interpretação literal e a sistemática do texto constitucional, com a introdução da emenda da reeleição, conduzem inafastavelmente à conclusão da desnecessidade de desincompatibilização para que presidente, governadores e prefeitos candidatem-se à reeleição, ou seja, aos mesmos cargos.
Para compreender essa afirmativa, é essencial examinar todo o processo de elaboração, a partir do teor exato do substitutivo do relator, deputado Vic Pires Franco.
Dizia originalmente o texto do relator (artigo 14, 5º): "O presidente da República, governadores dos Estados e do Distrito Federal, os prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos por um período subsequente, ou eleitos para quaisquer desses cargos do Poder Executivo, e concorrer no exercício do cargo".
Destarte, esse texto autorizava dois atos diversos: a reeleição do presidente, de governadores e de prefeitos, bem como a eleição dos ocupantes destes cargos a outro, desde que fosse de mandatário do Executivo, podendo concorrer no exercício do cargo. Assim, segundo o texto, um governador poderia ser candidato à reeleição, bem como à eleição de presidente ou de prefeito, podendo concorrer no cargo.
De outra parte, mantinha-se o disposto no parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição, que intacto perdura, exigindo que presidente, governador e prefeito, para concorrer a outros cargos, renunciem até seis meses antes do pleito.
De conseguinte, era essencial a emenda constitucional mencionar, quanto à eleição de presidente, governadores e prefeitos a outros cargos de mandatário do Poder Executivo, que poderiam concorrer no exercício do cargo, pois se tratava de uma exceção à regra geral estabelecida no parágrafo seguinte, que exigia renúncia, até seis meses antes do pleito, do presidente, governador ou prefeito que concorresse a outro cargo.
No processo de elaboração legislativa, o texto sofreu duas emendas de supressão: inicialmente, um destaque do deputado Inocêncio Oliveira, suprimindo a frase respeitante à eleição "para quaisquer desses cargos", ou seja, eliminando autorização para que, por exemplo, um governador fosse candidato a presidente ou a prefeito concorrendo no exercício do cargo.
Suprimida a frase que fazia referência à eleição "para quaisquer desses cargos do Poder Executivo", tornava-se um adendo meramente expletivo a locução final, "e concorrer no exercício do cargo", pois a função de estatuir uma necessária exceção havia desaparecido com a eliminação da referência à eleição a outros cargos do Executivo.
Destarte, ao se manifestar sobre o destaque supressivo, que visava eliminar a locução "e concorrer no exercício do cargo", o relator Vic Pires Franco ofertou parecer oral no qual considerava que, com a eliminação da frase que a antecedia, autorizativa de eleição a outro cargo do Poder Executivo, ficava sem maior relevo a locução final. E tem razão, pois a restrição da desincompatibilização resta intacta no parágrafo 6º, dizendo respeito a outros cargos e não aos mesmos.
Portanto, leva também a interpretação sistemática do texto à conclusão da inexistência da exigência da desimcompatibilização, independentemente da locução final suprimida, a qual consistiria numa superfetação.
Foram essas as razões que levaram a maioria da Câmara, com a maciça adesão de deputados governistas, a aprovar o destaque supressivo, que recebeu o voto favorável de 391 parlamentares.
Também a interpretação literal da expressão comum "outros cargos" não permite tergiversações, ou seja, a regra da desincompatibilização presente no parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição refere-se a outros cargos e, logo, não aos mesmos cargos.
Além do mais, essa exigência de renúncia até seis meses antes do pleito ao concorrer a outros cargos constitui restrição ao exercício de direito político, e as normas limitativas de direito não podem ser estendidas analogicamente. Mas, pelo contrário, hão de ser aplicadas de modo estrito, impedida a conclusão de que estariam subentendidas quando não mencionadas de forma clara e precisa. Exige-se que a restrição seja expressa, proibida sua incidência por via de analogia.
A interpretação literal, a sistemática e a histórica casam-se com a finalística, segundo a qual se indaga o significado da norma pelo escopo almejado. Ora, a disciplina diversa da exigência da desincompatilização para concorrer a outro cargo e a não-exigência para concorrer ao mesmo cargo justificam-se diante do próprio fundamento da reeleição, pela qual se busca, primacialmente, a continuidade administrativa.
Esse objetivo ver-se-ia desfeito com a desincompatibilização, porquanto se criaria um hiato de nove meses (seis antes do pleito mais três até a posse), que tornaria inócua a pretensão de proteger a continuidade da administração, da boa administração a ser mantida, quebrada pela renúncia obrigatória nove meses antes do término do mandato. Seria contraditório visar a continuidade administrativa e ao mesmo tempo destroçá-la com a obrigação da desincompatibilização. É, aliás, o que acentua editorial deste jornal (31/1).
Nos países em que se admite a reeleição, inexiste a determinação de renúncia meses antes do pleito, visto que fugiria ao bom senso esse "buraco negro" criado na administração pública em prejuízo do interesse geral. Mesmo porque há formas e modos de controle do uso do poder político no processo eleitoral, mormente pela denúncia pelos opositores de qualquer prática abusiva a ser rejeitada pelo eleitorado, cujo senso de cidadania cresce a cada passo.

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