São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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O sistema globalitário

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Durante quase 20 anos, o urbanista francês Paul Virilio avisou ao mundo, em seus escritos e palestras, que um dia os mais básicos elementos de nossa percepção, o tempo e o espaço, seriam total e irremediavelmente modificados pela tecnologia. E então, subitamente, esse futuro chegou.
Amante radical da rapidez, "Rousseau moderno da cultura técnica", nas palavras do filósofo e jornalista Philippe Petit, Virilio é o autor, entre outros trabalhos, de "Velocidade e Política", "A Arte do Motor" (ambos editados no Brasil pela Estação Liberdade) e "Cybermonde - la Politique du Pire" (Cybermundo - a Política do Pior), lançado na França em meados do ano passado.
Um pensador da luta contra "a tirania do tempo real" e do "imperialismo da ligeireza", com "Cybermonde" Virilio mergulha no universo das infovias, dos computadores pessoais e da Internet. E o que traz não são exatamente boas novas: "Temos que civilizar a tecnologia", disse Virilio à Folha, por telefone, de seu apartamento na avenue Jean Moulin, na cidade de Paris.
Nascido em 1932, de pai italiano, comunista convicto, e de uma mãe com um extremo fervor católico, Virilio passou a infância na França ocupada pela Alemanha. Para ajudar a família, trabalhou com os pintores Braque e Matisse, cumprindo o papel de ajudante. Depois, descobre na Sorbonne a filosofia, os escritos de Raymond Aron e o amor pela arquitetura.
Virilio é, em suas próprias palavras, "um homem limitado que procura tratar das situações sem limite". Aqui ele fala de algumas delas: a rebeldia contra a tecnologia, a nova tirania e o sistema "globalitário".
*
Folha - Existe hoje uma luta contra o mundo contemporâneo e suas tecnologias?
Paul Virilio - Acho não ser possível uma guerra contra o mundo contemporâneo, a guerra contra a tecnologia. O que existe agora é uma guerra contra a promoção da tecnologia. Eu diria, na verdade, que temos uma guerra contra a publicidade. Hoje a "publicidade multimídia", em nome das "novas tecnologias", está em seu momento "maximizante".
Há agora os investimentos de milhões de dólares para a produção "multimidiática" de sistemas informativos. O que existe então é uma resistência à propaganda, a vontade de denunciar o caráter abjeto e "propagandístico" dessa publicidade. Nós não estamos então guerreando contra a nova técnica, mas estamos lutando contra sua promoção, contra a propaganda e contra os investimentos de milhões de dólares que são usados para exaltar esse "novo material".
Folha - Hoje lutamos contra o que criamos?
Virilio - Eu creio que para responder a essa questão devo falar do século 20, a primeira metade desse século, quando o homem desenvolveu a técnica da guerra de uma maneira absoluta, por meio da bomba atômica e da mundialização da guerra (com os dois conflitos mundiais) e o desenvolvimento das experiências nucleares e, também, das "catástrofes civis". Hoje não podemos falar de uma "nova tecnologia", mas falamos de uma nova dimensão da tecnologia, falamos de uma dimensão negativa que agora se assume e que passamos a perceber.
Folha - O sr. já afirmou que a globalização, a Internet, não une as pessoas, mas as submete a uma nova tirania.
Virilio - Certamente. Antes conhecíamos uma forma de imperialismo colonial, como a batalha na Argélia e... Bem, tudo o que foi realizado nas colônias francesas. Conheci então o imperialismo anglo-saxão e francês.
Conheci o imperialismo colonial e, evidentemente, o imperialismo político do nazismo durante a Segunda Guerra. Eu conheci o imperialismo soviético e sua idéia de coletivismo que, na verdade, muito pouco tinha a ver com a noção de justiça social.
Hoje o imperialismo não está mais limitado ao espaço, como o colonialismo anglo-saxão e francês se limitava antes à África ou mesmo a um pequeno espaço na América Latina. Não está contido na Europa, no caso do nazismo, ou mesmo o totalitarismo soviético, que se limitava ao próprio bloco e seus satélites.
Com a globalização, o que existe é a possibilidade de um totalitarismo definitivo, um totalitarismo sem "exteriores". Um totalitarismo global. Proporia o termo "globalitário", pois antes o totalitarismo se restringia apenas ao espaço, à geografia do mundo. Globalitário é o fim do mundo, mas não no sentido apocalíptico. É isso que acontece com a difusão da tecnologia.
Folha - Há uma forma de resistência possível?
Virilio - É claro que sim, por meio de um trabalho teórico, por meio do pensamento. E quando falo isso me lembro de Gilles Deleuze e de outros tantos amigos.
Folha - E quanto à ação prática?
Virilio - A ação prática, você deve saber, se inicia com a fundamentação de uma idéia. A tecnologia a que estamos submetidos nesse momento, a tecnologia da realidade virtual, da TV interativa, é a idéia e o conceito que combatem então outras idéias e os outros conceitos já existentes.
Por isso, a importância de refletir e trabalhar. Não é um problema para os partidos políticos, não é um problema para os sindicatos. É um problema para o pensamento e para o trabalho coletivo que, espero, se converta em uma ação em nome da democracia.
Folha - Qual é o lugar do "rebelde" no mundo em que vivemos? O que é agora o "homem revoltado"?
Virilio - Na gênese do progresso já existe aquele que luta contra a própria idéia de progresso. O progresso não é jamais positivo por si mesmo. O progresso técnico, assim como o moral e o político, não é positivo por si mesmo. É a luta de uma sociedade contra o seu progresso (não para exterminá-lo, mas para lutar contra seu aspecto negativo) e a tentativa de civilizá-lo que traz algum benefício na evolução. Tudo já ocorreu da mesma maneira com a Revolução Industrial, com a vida sacrificada de crianças nas fábricas e que, depois da luta pela civilização, se converteu em algo menos brutal.
Folha - O sr. está pessimista com a situação e as formas de luta?
Virilio - Não. De maneira nenhuma sou um pessimista. Ao contrário, estou otimista. Sou a favor de uma luta contra os extremismos, contra os excessos. Não é contra a tecnologia e o progresso que devemos lutar, mas contra seus excessos. Eu sou totalmente apaixonado pela tecnologia. Não sou um ecologista que propõe o retorno aos bosques e florestas. De jeito nenhum!

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