São Paulo, segunda-feira, 10 de fevereiro de 1997
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Nunca nos banhamos nas águas do mesmo verão

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Era diferente o conceito de verão na Europa. Talvez como a missa dominical para os religiosos. Não podíamos faltar. Trabalhava-se duro, definia-se o lugar, com antecedência, e nenhuma força terrena nos afastaria do caminho do sol.
O próprio corpo, paralisado pelo inverno, inaugura sua metamorfose-cor, flexibilidade, energia, desejos ressuscitados, reabrindo-se no ciclo vital a temporada das paixões vulcânicas.
Havia também a literatura. Cada verão era precedido de uma cuidadosa análise: quais os romances, quais os ensaios que se harmonizam com nosso gozo estival? Os principais jornais lançavam cadernos, as editoras criavam anúncios específicos para nossas férias.
Já estamos a caminho do alto verão. E há mais de dois meses nem sequer entram livros estrangeiros no Brasil, exceto os comprados via Internet. A Receita Federal decidiu mudar seus métodos e as importadoras foram atingidas em cheio pela experiência. Dona Vana, na livraria Leonardo da Vinci, está arrancando os cabelos. "Dégueulasse", é o mínimo que se pode dizer, num país que já é indiferente aos livros.
No verão europeu havia as roupas, cuidadosamente escolhidas. Aqueles suéteres brancos que aparecem enrolados no pescoço, quando os heróis caminham pela praia, são de verdade. E, o que é mais incrível, chegam a ser usados de noite.
Tudo tem sido diferente por aqui. Trabalha-se normalmente, e verão para mim passou a ser uma espécie de coffee-break. Você sai, dá um mergulho e volta como se nada tivesse acontecido.
Só de falar em roupa, sinto calor. Meu ideal de elegância é o mesmo de qualquer carioca pobre: short e sandálias japonesas, fotocópia da carteira de identidade e, como dizia o Cazuza, um trocado para dar garantia.
Estava construindo toda essa história, quando vi imagens de paulistas em Porto Seguro. E pensei: mas está lá, nosso verão. Isso me ajuda entender o passado. Era um paulista, sonhando com praias, dias longos, noites quentes e perfumadas.
Para haver o verão dos sonhos, é preciso também um longo inverno e, quem sabe, aquelas fogueiras de fim de primavera, quando queimamos todos os trapos e deixamos para trás nossos gelados fantasmas.
Trabalho num subterrâneo, concebido pela arquitetura socialista, isso é pago com meus olhos pelo meu passado. Relembro crepúsculos, escrevo letras de música que falam de mãe d'água queimando a pele, busco feriados no calendário como um pistoleiro que prepara sua emboscada.
No entanto, o verão continua para milhares de pessoas indiferentes às minhas especulações. Biquínis de crochê, argolas de tartaruga, praias desertas. As meninas cantam o anúncio de TV: escola, tchau, almoço na hora do jantar, liberdade.
O sonho da liberdade, de romance, a metamorfose do corpo, o encontro com a água e seus mistérios -tudo isso é permanente e o fato de que só tenha me dado conta no alto verão, quando ele já sorriu pela segunda vez, não tem importância.
Deixemos de literatura, vamos ao mar. Mesmo sabendo nesse verão que algo mudou radicalmente. Algumas praias se perderam, outras estão no limite. O posto 9, por exemplo, agora passou a ser objeto de história. Lamenta-se o fim das dunas do barato, a ausência de Leila Diniz, celebra-se o apito, a primeira década do verão da lata (esse sim valia uma história de realismo mágico) e ninguém se lembra da perda essencial: não dá mais pra mergulhar.
Perdemos as águas límpidas, o que faremos agora de nossas tatuagens, do pêlo dourado de nossa pele, do suor do nosso corpo -como um peixe vivo será difícil viver fora da água fria?

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