São Paulo, segunda-feira, 10 de fevereiro de 1997
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O papa e o gato

CARLOS HEITOR CONY

Roma - Fui tratar um problema de minha filha, que mora na cidade, e acabei dando com a pouca paciência num guichê do Ministério da Fazenda, justo na divisa entre a cidade de Roma e o Estado do Vaticano. Como o Equador e o limite entre o bem e o mal, ali a linha divisória é imaginária: alguns guichês pertencem ao Estado italiano, outros são vaticanenses -ia escrevendo "vaticínios", lembro um deputado que declarou da tribuna: "Deixemos o Brasil para os brasileiros e os vaticínios para o Vaticano!".
Resolvida a questão sem mortos nem feridos, mas com ameaças recíprocas de uns e de outros, fui tomar um café e só então reparei que era quarta-feira, dia em que o papa dá bênção aos fiéis na praça de São Pedro, que já estava cheia de turistas. Para ser exato: de japoneses, que quando estão na Via Condotti são chamados de gafanhotos e ali na praça são chamados de "peregrinos". A função faz o nome.
A chuva caía rala quando uma voz, imensa e poderosa, que parecia vir do céu, avisou que o papa amanhecera constipado e o médico o proibira de aparecer na janela.
Nem assim os turistas (ou peregrinos) japoneses perderam a manhã. Sem compreenderem o que o alto-falante avisava, imaginaram que aquela voz era a própria bênção pontifícia, alguns se persignaram, a maioria tirou fotos daquela janela lá em cima. Como todo turista, o importante é tirar fotos. Mais tarde, com os filmes revelados e mostrados aos amigos, é que eles ficam sabendo se a viagem foi boa.
Duas jovens se aproximam, pedem com gestos que lhes tire uma foto. Apresentam-me a máquina, uma Pentax que só falta fazer chover. Penso que desejam ter a bela cúpula de Michelangelo como fundo. Corrigem-me. Apanham um gato que, não sendo turista nem peregrino, lambia uma tigela de leite na calçada. Elas vieram a Roma, não viram o papa, mas certamente gostarão da foto.

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