São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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O último pintor europeu

PAULO VENANCIO FILHO

não por acaso, um quadro de Jasper Johns ilustra o início de "A Crise da Arte como 'Ciência Européia"', capítulo 7 do livro "A Arte Moderna 1770-1970", de G. C. Argan. Se no pós-guerra o expressionismo abstrato, ainda nos moldes da "ciência européia", portava a universalidade da arte moderna, com Jasper Johns e outros nasce nos EUA uma arte que só adquire plena radicalidade ao interagir com as imagens e os objetos da cultura de massas do capitalismo avançado norte-americano. Lá, a pop só seria possível feita por americanos, referida à cultura americana. Basta ver as pálidas versões pop francesas, italianas e até brasileiras. E os ingleses, que se vêem como pioneiros da pop, só revelam o dom de absorver e até antecipar padrões da cultura de massas norte-americana. Com a pop quebrou-se o rumo universalista da arte moderna desde o impressionismo.
Em 1954, quando Johns pintou as primeiras das suas famosas bandeiras, o expressionismo abstrato ainda dominava as artes plásticas e Pollock, que morreria em 1956, era o artista mais importante do país. Mas então uma nova geração já surgia na cena norte-americana e substituiria as melodias desconjuntadas de Thelonious Monk, os longos improvisos de Coltrane, o "free-jazz" de Ornette Coleman, a "beat-generation" na literatura e também o tipo de literatura de Hemingway e Fitzgerald -tudo o que de algum modo se ligava ao expressionismo abstrato-, pela música aleatória de John Cage, a dança desarticulada de Merce Cunningham, a arquitetura de Buckminster Fuller.
Com o expressionismo abstrato a arte dos EUA se equiparou enfim às suas letras e atingiu ou superou o nível da arte européia, cristalizado no cubismo. Após tal maturidade, regrediu a uma semi-adolescência: a pop. Johns e Robert Rauschemberg foram, talvez, respectivamente, o Picasso e o Braque da pop -embora Rauschemberg se mostrasse depois quase um Dali. Os primeiros a tirar de cena Picasso, Miró e Matisse, e a substituí-los por Duchamp. Duchamp que então estava esquecido, possivelmente há meio século. O dadaísmo é resgatado. Dos surrealistas, Magritte surge agora como principal referência. É uma inflexão marcante na linha de uma continuidade histórica.
Johns expôs individualmente pela primeira vez em 1958, na galeria de Leo Castelli, seu marchand desde então. Alfred Barr, diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, foi à exposição e comprou três trabalhos para o acervo. Temendo alguma reação mais conservadora da instituição, encarregou ao arquiteto Philip Johnson a aquisição de uma tela com a imagem da bandeira dos EUA. A obra custou US$ 1.000 e foi doada ao MoMA. Anos depois, o Museu Whitney teve que pagar um pouco mais caro por uma "bandeira" do mesmo período: US$ 1 milhão. Como se vê, Johns -que esteve e foi premiado na Bienal de São Paulo de 1967- é um artista, como poucos, rapidamente bem-sucedido.
Mais de 40 anos de trabalho do autor estão nesta grande mostra do MoMA. Poucos artistas no mundo são capazes disso. Menos ainda são os que mantêm um tal nível por tanto tempo. E Johns ainda está em ação. O mais curioso é notar como, a exemplo de outros grandes artistas, vai invalidando definições. Será que foi um artista pop? Sim, ele pintou a bandeira americana, mapas dos EUA, latas de cerveja Ballantine... Mas sua pintura não será antes uma "resistência" à pop? Uma resistência à imagem industrial, de tal modo que deve refazê-la virtuosisticamente com a mais tosca das técnicas: a encáustica. O que faz de Johns algo como o último pintor europeu. Como americano, realizou a tarefa de um europeu.
Um grande artista, uma grande exposição. Faltou um grande catálogo. Em síntese, o que dizer de Johns? É o maior artista americano desde a geração do expressionismo abstrato, provavelmente o maior artista dos últimos 30 ou 40 anos, o último grande mestre da longa tradição da pintura ocidental (que se considera pertencente a ela). Mas isso não ficou dito. Não está afirmado nem nos dois textos do curador K. Varnedoe, nem no texto de R. Bernstein, nem na cronologia comentada, no catálogo da mostra.
Hoje existe uma atitude intelectual que mais e mais se dissemina: a do crítico não emitir juízos de valor. Ou a de que a postulação destes juízos é autoritária e até antidemocrática. Deselegante, grosseira, ofensiva. Ou a de que tais juízos são irrelevantes e desnecessários. Inúteis, enfim. É a alusão que fica ao final do catálogo. De que valem elaboradas construções teóricas, interpretações e metáforas sofisticadas, análises complexas, se, atrás disso, não existe qualquer "convicção", e o vigor da "persuasão" está ausente? Faltou um Clement Greenberg para Jasper Johns.

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