São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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O roteiro de Visconti

MARIAROSARIA FABRIS

a obra de Luchino Visconti, duas décadas depois da sua morte, continua estimulante. A descoberta de "Ângelo", romance inacabado e inédito, por René de Ceccatty (1993), um congresso realizado em Roma em dezembro de 1994 -"Primo Convegno Internazionale di Studi Viscontiani"-, teses integralmente ou em parte dedicadas à análise de alguns de seus filmes (na USP, na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade de Brasília) são exemplos que vêm atestar o crescente interesse por esse diretor, muitas vezes polêmico, mas sempre instigante, nesses últimos anos.
Entre os estudiosos de Visconti, destaca-se o crítico de cinema Lino Micciché, que tem escrito e continua escrevendo artigos e livros sobre o aristocrata milanês. "Luchino Visconti: Un Profilo Critico" constitui uma espécie de súmula dos vários escritos de Micciché e se apresenta como um texto de divulgação, às vezes quase didático, se comparado a ensaios mais profundos que o próprio autor dedicou a esse incansável diretor de espetáculos fílmicos, teatrais e operísticos.
Ao longo de 13 dos 14 capítulos do livro, Micciché traça o itinerário de Visconti desde sua formação e os primeiros projetos cinematográficos, que só se concretizaram no caso de "Obsessão" (1943) e "Giorni di Gloria" (1945), até seus últimos filmes, "Violência e Paixão" (1974) e "O Inocente" (1976), em que a quase ausência de externas corresponderia ao "fechamento existencial" do cineasta sobre si mesmo. Essas e outras obras da filmografia viscontiana são analisadas dentro de um contexto maior, em que fitas, peças e -a partir de 1954- óperas se intercalam e se intercomunicam para compor o vasto mosaico de uma produção que abarca 20 filmes, se forem incluídos também os documentários "Appunti Su un Fatto di Cronaca" (1951), descoberto recentemente, e "Alla Ricerca di Tadzio" (1970), 44 montagens teatrais e 22 espetáculos musicais, entre balés e dramas líricos.
Assim, graças a essa estruturação, que não privilegia apenas um aspecto da produção de Visconti, estabelece-se uma série de interconexões em seu trabalho de direção. Por exemplo, entende-se como à inovação cinematográfica representada pelo primeiro filme correspondeu a árdua tarefa de modernização do palco italiano no segundo pós-guerra, com a encenação de textos de Cocteau, Hemingway, Anouilh, Sartre, distantes, porém, de um registro meramente realista, uma vez que para o diretor o teatro era antes "verdadeira ilusão" do que "ilusão da verdade".
Verifica-se, também, que a apresentação de obras mais realistas, como "Um Bonde Chamado Desejo" (1949, 1951), de Tennessee Williams, ou "A Morte de um Caixeiro-Viajante" (1951, 1956), de Arthur Miller, impregnadas daquela mesma autenticidade do cotidiano buscada em "A Terra Treme" (1948), interpunha-se a grandiosas montagens teatrais, entre as quais as das comédias shakespearianas "Como Gostais" (1948) e "Tróilo e Cressida" (1949), prenunciadoras do gosto pela grandiloquência que caracterizará boa parte da filmografia viscontiana, sobretudo de "O Leopardo" (1963) em diante.
Dessa mesma forma, percebe-se que os trechos de "Il Trovatore", de Giuseppe Verdi, presentes nas sequências iniciais de "Sedução da Carne" (1954), constituíram o prelúdio dos espetáculos operísticos que Visconti começara a dirigir naquele ano.
Intui-se, ainda, que a história dos emigrantes italianos no Brooklyn, contada por Miller em "O Panorama Visto da Ponte", que o diretor montou em 1958, inspirou em parte a saga dos migrantes lucanos em Milão de "Rocco e Seus Irmãos" (1960).
Às tendências realistas dos primeiros filmes, constantemente questionadas pela atividade teatral paralela ou por uma realização como "Sedução da Carne", Luchino Visconti irá opor sua crescente predileção pela espetaculosidade, contestando aqueles estilemas neo-realistas dos quais um certo cinema reacionário havia se apropriado. Consequentemente, as camadas populares deixarão de ser as grandes protagonistas de seus filmes e o cineasta começará a concentrar-se na classe e na cultura dentro das quais crescera, produzindo obras mais intimistas. Lino Micciché ressalta como a busca das "temáticas da interioridade" foi um fator de época, de uma geração, pois atraiu não só Visconti como Antonioni, Fellini e, diria eu, o Rossellini de "A Voz Humana" e das fitas protagonizadas por Ingrid Bergman.
Ao mesmo tempo, na poética viscontiana, a história passava a prevalecer sobre a História, uma vez que esta, aprisionada numa redoma de cristal, não era mais percebida como uma realidade atual, ao contrário de antes, quando revisitar o passado significava fazê-lo para compreender melhor o presente. "O Leopardo" inaugurava essa nova fase, embora, nesse sentido, a obra mais significativa poderia ser "Ludwig, a Paixão de um Rei" (1973). Poderia, porque, como alerta Micciché, o filme foi violentamente mutilado. A versão integral de 1980, devolveu ao projeto viscontiano sua incomum "unidade estrutural e linguística", mostrando como, apesar do impasse do início dos anos 70, o diretor estava longe da esterilidade criativa.
A temática da decadência e da morte, frequente na obra de Visconti, principalmente nos últimos anos, acentuou-se nas realizações da segunda fase. "Violência e Paixão" e "O Inocente" também foram filmes realizados como se fossem réquiens, como diria o diretor. Na minha opinião, o primeiro representa uma espécie de parábola de sua própria existência; o segundo, uma súmula de sua poética, pelo menos de 1954 em diante, pois, como afirma Micciché, ele "propõe mais uma vez o leitmotiv de toda a obra viscontiana: a queda de um mundo, de uma sociedade e de uma época, vista por meio da derrota de um ou mais indivíduos que representam sua classe hegemônica".
Este filme (que também focalizava a burguesia emergente da nova capital do Reino da Itália), a meu ver, simbolizou ainda o fim de um itinerário que, partindo de "Sedução da Carne" e passando por "O Leopardo", permitiu a Visconti refletir sobre o progressivo desengano dos ideais que haviam animado a unificação do país. Dessa forma, haveria mais uma trilogia em sua filmografia, além da alemã, constituída por "Os Deuses Malditos" (1969), "Morte em Veneza" (1971) e "Ludwig", e da neo-realista, questionável por englobar "Obsessão" e "A Terra Treme", mais rotuláveis de realistas "tout court", e "Belíssima" (1951), uma crítica mordaz ao neo-realismo.
As observações sobre "O Inocente" servem para introduzir o último capítulo do livro, em que Lino Micciché agrupa a obra viscontiana em grandes temas -a história, a derrota, a mulher, o sexo, o melodrama, a música, a pintura, a literatura, o classicismo-, retomando algumas das principais questões que perpassaram seu texto. Entre estas, gostaria de destacar a relação entre literatura e cinema, bastante intensa em Visconti, uma vez que três quartos de sua filmografia se baseou em obras literárias, em geral "traídas" e nas quais frequentemente eram enxertados outros textos para dar origem a um novo discurso.
Mais do que em transposição, dever-se-ia falar em apropriação, citação -como acontecia também com a pintura (uma vez que o diretor retirava dos quadros não só elementos iconográficos bem como notações cromáticas, linhas de força, perspectivas, o próprio agenciamento espacial) e a música (com as alterações dos compassos para adequar o elemento sonoro ao ritmo das imagens). A única exceção foi "O Estrangeiro" (1967), em que a fidelidade ao romance de Camus, imposta também pela viúva do escritor, redundou num filme apagado, mera ilustração do texto literário.
A questão da fonte literária em Luchino Visconti é particularmente interessante pois, para ele, "as grandes construções narrativas dos clássicos do romance europeu" deveriam servir de inspiração para qualquer pessoa que se aventurasse a fazer cinema. Essas são palavras textuais do cineasta em "Tradizione e Invenzione", que, na obra de Micciché, abre a primeira parte de um apêndice dedicado a alguns de seus escritos (organizados por David Bruni) e a uma lista completa dos espetáculos dirigidos por ele no cinema e no teatro.
Por fim, no livro em questão falta destacar a bibliografia essencial que o completa, bastante exaustiva, na qual, porém, chama a atenção a ausência de alguns títulos, como, por exemplo, "Cinema e Pittura" (1987), que o autor sem dúvida deve ter lido, pois as fontes iconográficas que cita para "A Terra Treme" são as mesmas apontadas por Pier Marco De Santi, ou "Les Macchiaioli et le Cinéma: l'Image du 19e. Siècle et la Peinture des Macchiaioli dans le Cinéma Italien" (1979), que ele deveria conhecer, uma vez que as considerações de Raffaele Monti lhe permitiriam aprofundar as relações entre pintura e cinema em "Sedução da Carne" e assinalar também em "O Leopardo", e não só no filme de 1954, a presença dos valores plásticos que aqueles pintores expressaram por manchas de cores.
Esses, no entanto, são pequenos detalhes que não tiram o mérito desta obra concisa, porém abrangente, sobre a trajetória viscontiana. Talvez tivesse sido interessante destacar ainda o talento do diretor para forjar novos intérpretes (no caso de Marcello Mastroianni e Maria Callas, por exemplo, o encontro com Visconti foi determinante para suas carreiras), como lembra também sua mais fiel roteirista, Suso Cecchi d'Amico, em "Storie di Cinema (e d'Altro)" (1996).
Acredito que a tradução brasileira de "Luchino Visconti: un Profilo Critico" tornaria ainda mais conhecida entre nós a obra desse grande artista e faria apreciar também fora do estrito âmbito acadêmico a acuidade interpretativa de Lino Micciché.

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