São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Unidos da reforma agrária

ANTÔNIO DE SALVO

Que falta faz o Stanislaw! Esse era o nome de guerra de Sergio Porto, cronista inesquecível, mordaz e irreverente, que atormentava a vida dos políticos e de outros expoentes, lá pela década de 70. Sabia, como ninguém, expor o ridículo de certas situações, com humor ferino, que abalava pela raiz o alvo escolhido.
Letrista bissexto, tinha no "Samba do Crioulo Doido" uma página antológica, em que descrevia a história do Brasil pela ótica de um compositor carnavalesco que faz seu samba-enredo misturando de forma extravagante fatos e personalidades históricas, num amontoado de incongruências que fazia rir e pensar.
Hoje, talvez achasse nova inspiração no tema da reforma agrária. Numa ala, um enorme contingente de produtores rurais, experientes, preparados e competentes, batalha com vigor para sobreviver a uma tal de globalização.
Com notórias deficiências de infra-estrutura, de tecnologia, de qualidade e preços razoáveis de insumos, de qualificação de mão-de-obra, de sistema tributário e higidez de mercados, sujeitos a escorchantes regras de crédito rural, dançam, produzindo com preços de venda estáveis e competitivos.
Enfrentam um mercado internacional viciado e perverso, já que têm que disputar clientes, aqui dentro e lá fora, com mercadorias que chegam recheadas de subsídios e vantagens artificialmente proporcionados pelo país de origem.
Apesar de desprotegidos quanto a essa concorrência desleal, constituem o mais eficiente sistema de produção primária do mundo tropical e são obrigados a permanecer assim, pois qualquer redução de eficácia no uso dos instrumentos precários de que dispõem os levaria à falência ou à desapropriação.
Stanislaw ficaria deliciado ao saber que "produtivo", no jargão oficial brasileiro, é somente o fazendeiro que tem produção maior do que um mínimo fixado em norma legal -e mínimo alto, na maioria dos casos. Se não tiver atingido esse patamar, o rótulo de "terra improdutiva" é grudado no seu imóvel, mesmo que este tenha sustentado a ele e à família, gerado emprego e pagado os impostos por toda uma existência. E toda a área vai para as estatísticas como "improdutiva", ajudando a deformá-la cada vez mais.
Uma outra ala dessa confusa "escola de samba", por sinal a maior de todas, vem composta de 3 milhões (sim senhor, 3 milhões) de pequenos proprietários de terra.
Pobres e desassistidos, verdadeiros párias na sociedade brasileira, discriminados por serem proprietários, ficam torcendo para que se faça um assentamento de sem-terra nas vizinhanças, pois aí sim haverá a estrada, o posto de saúde, a escola que hoje lhes são negados, mas que estão assegurados aos novos donos. Quem sabe poderão também utilizar esses serviços públicos? Talvez, pagando um pequeno percentual voluntário de 2% ao MST, até levantem um crédito rural especial.
A terceira ala, a dos "sem-terra", é a mais heterogênea e desordenada. Invade outras alas, apupa e aplaude alternadamente a comissão de frente e os destaques. Às vezes canta seu hino em português arcaico ou até em outras línguas. Stanislaw saberia descrevê-los com o senso de humor necessário.
Embora o estandarte, as alegorias e as fantasias sejam iguais, há de tudo nesse grupo: convictos socialistas radicais, clérigos e leigos brandindo efígies de Marx, Guevara e Cristo, alegres intelectuais, ecologistas e indigenistas, garimpeiros de riquezas esgotadas, desempregados e assemelhados, modestos barnabés do interior, pequenos proprietários de terra querendo aumentar o patrimônio.
Há, até mesmo, gente autêntica do campo que viu frustrada sua vocação. Gente que precisa de um torrão para fazer o trabalho que conhece e tem que enfrentar tanta concorrência indevida para postular sua justa causa.
O tema é o mesmo, mas as melodias e as letras são diferentes. Todas cantam a reforma agrária. Cada um a seu modo. Perdidos no desfile, os destaques, nacionais e estrangeiros, intelectuais ou da cúpula eclesiástica, a comissão de frente com ministros e presidente, a bateria da imprensa, enfim, continuam todos apenas marcando o refrão.
Nas arquibancadas, o povo aplaude, mesmo sem entender direito por que a escola não vai a lugar nenhum. Enfezados num canto, a TFP e a UDR vaiam sem que sejam notadas. Sorridente onde estiver, Stanislaw apreciaria o sabor dessa festa tropical cara e ilógica.

Texto Anterior: Dar(de)cy
Próximo Texto: Banco Central; Rádio pirata; Café; Desarmamento
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.