São Paulo, sábado, 1 de março de 1997
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Ken Loach põe seu cinema a serviço do socialismo

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O britânico Ken Loach, 60, gosta de remar contra a maré. Em tempos de cinismo globalizado, ele ainda acredita no cinema engajado e anseia por um grande partido "realmente marxista".
No final do ano passado, a BBC exibiu no Reino Unido, com grande impacto, seu documentário de uma hora "The Flickering Flame" (A Chama Vacilante), sobre a greve dos portuários de Liverpool, que já dura 17 meses. O filme deverá ser exibido em março ou abril na TV francesa.
Em setembro de 95, cerca de 500 portuários de Liverpool entraram em greve contra a demissão de oito companheiros que se recusaram a fazer hora extra de graça. Por extensão, era uma greve contra a desregulamentação trabalhista nas docas, que reintroduziu o trabalho temporário e sem garantias.
Considerados demitidos pela empresa que administra as docas, os grevistas desencadearam um movimento internacional de boicote ao porto de Liverpool. O filme de Loach mostra esse movimento "por dentro", tomando claramente partido dos grevistas.
Em entrevista à Folha por telefone, de Londres, Loach falou sobre o documentário e também sobre seu último longa-metragem de ficção, "Carla's Song", atualmente em cartaz na Europa.
*
Folha - Por que o sr. escolheu como assunto de um filme a greve dos portuários de Liverpool?
Ken Loach - É uma luta muito importante, que foi mantida fora dos noticiários por longo tempo. A razão pela qual eu escolhi esse assunto é que ele é sobre se as pessoas têm o direito de querer trabalhar com dignidade, para receber um dinheiro razoável e ter boas condições de vida.
O modo como as economias têm se desenvolvido na Europa inteira resulta em que agora os trabalhadores têm de se conformar com condições de trabalho muito piores do que as que eles tiveram por muito tempo. Eles perderam sua estabilidade profissional. Têm muitas vezes de mudar de tipo de trabalho. O trabalho regular está acabando.
Tudo aquilo por que os sindicatos lutaram -bons salários, boas condições de trabalho, segurança- está acabando.
Os trabalhadores do porto de Liverpool são um dos poucos grupos que ainda lutam por esses direitos básicos. É uma história muito importante que eles estão fazendo.
Folha - Qual é a situação atual do movimento? O que mudou depois que o sr. fez seu filme?
Loach - Não mudou muita coisa. Os grevistas fizeram agora uma proposta, a de formar uma cooperativa para trabalhar como portuários. Ainda estão esperando a resposta dos empregadores.
Enquanto isso, o porto funciona precariamente, com o trabalho temporário dos fura-greves.
Folha - Poderia falar um pouco sobre as circunstâncias e a atmosfera das filmagens?
Loach - Filmamos em setembro do ano passado. Ficamos com os grevistas durante umas duas semanas, fomos com eles aos congressos e manifestações. O que nos impressionou foi o bom humor deles. São pessoas muito fortes, muito calorosas. Foi uma ótima experiência para nós.
Folha - Eles colaboraram com as filmagens?
Loach - Totalmente. Ajudaram em tudo o que foi possível. Mas os patrões não quiseram falar conosco, nem os dirigentes sindicais, que não apoiaram o movimento. Talvez eles soubessem que o filme seria a favor dos grevistas.
Folha - Em sua opinião, os artistas devem tomar partido nas questões políticas e sociais?
Loach - Sem dúvida. Como cidadãos, como seres humanos, estamos envolvidos. Há um ditado inglês que diz que você não pode ficar neutro entre os bombeiros e o fogo. E às vezes, como acontece agora, é preciso ficar do lado do fogo.
Folha - Como o sr. distinguiria um documentário como "The Flickering Flame" de seus longas-metragens que também tratam de temas políticos, como "Terra e Liberdade" e "Carla's Song"?
Loach - A diferença está na forma. No documentário, você tem simplesmente que registrar o que você vê e o que as pessoas dizem. Procurei, em "The Flickering Flame", mostrar os trabalhadores falando, explicando sua própria situação, em vez de dizer eu mesmo o que o espectador deve pensar. Mas o espírito é o mesmo em todos os meus filmes.
Folha - Como foi a reação do público britânico ao filme?
Loach - Foi muito boa. Os índices de audiência foram altos e as críticas foram positivas. Muitas pessoas receberam informações sobre a greve que não receberiam de outra forma. Isso fez com que muita gente que normalmente não apoiaria lutas trabalhistas passasse a apoiar o movimento.
Acho que lembrou às pessoas que elas não precisam se deitar e morrer se os patrões assim quiserem. Elas podem reagir. Experiências como a de Liverpool são inspiradoras.
Folha - O sr. está aliado a algum partido político?
Loach - Há muita gente como eu, hoje, na Europa, hostil aos partidos social-democratas. Sentimos que eles não dão respostas adequadas à situação.
Estamos preocupados com o desemprego em massa, com a exploração. Existe uma grande expectativa por um movimento político que represente essas pessoas. No momento, não existe nenhum partido que faça isso.
Todos os partidos social-democratas -o SPD alemão, o Partido Socialista francês, o PSOE espanhol- defendem o capitalismo.
Precisamos de um partido de massas à esquerda, que tenha uma agenda socialista, mas socialista de verdade, ou seja, marxista.
Folha - Que tipo de cinema ainda lhe interessa, hoje em dia?
Loach - Documentários. Os documentários me emocionam muito mais que os filmes de ficção.
Folha - Na ficção, não existe nenhum cineasta que o inspire?
Loach - Os antigos, como os neo-realistas, ou os que faziam filmes militantes nos anos 50 e 60, aos quais eu retorno sempre, por prazer ou em busca de inspiração.
Acho que a maior parte do cinema contemporâneo é muito preocupada em ser "chique".
Folha - O Brasil, como o sr. sabe, é um país com imensos problemas políticos e sociais. O sr. já pensou em filmar aqui, ou fazer um filme com assunto brasileiro?
Loach - Não, por causa da barreira da língua. Acho muito difícil trabalhar fora da nossa própria cultura.
Folha - Mas o sr. fez "Carla's Song", que é sobre a Nicarágua.
Loach - Sim, mas metade dele se passa na Escócia, e o personagem principal é um motorista de ônibus escocês.

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