São Paulo, sábado, 1 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vozeirão sobrepõe roupagem dançante ordinária

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DO ENVIADO ESPECIAL

"Um" seria um disco ordinário de dance music, não se tratasse de uma das mais importantes cantoras que o Brasil concebeu. E só sua volta, nua ou vestida, já é motivo de comemoração no país sem memória.
Baby, agora do Brasil, se apresenta malucona como sempre foi. Desta vez, com ajuda de uns tais produtores americanos, parece bruxa que foi jogando ingredientes -tecno, rap, rock, house, charm, funk, samba, blues, jovem guarda, soul- e ferveu a mistura sem se importar muito para o caldo que iam dar.
Desde a primeira faixa, "Um" mostra-se trabalho que assimilou a pequena revolução operada por Fernanda Abreu na MPB no início desta década.
O charm "Sexy Sexy" dialoga com o "SLA" de Fernanda, enquanto Baby, agora em visual drag queen, dialoga com a godiva de Copacabana Kátia Flávia, de Fausto Fawcett. Hippie que sempre foi, Baby se confessa anacrônica em relação a ambas, em versos como "Eu corro perigo, sim/ se a onda simplesmente for sexo/ mas eu não vou me fragmentar".
Mas é aí que mora a diferença: o que tem de anacronia, ela tem também de tradição -já cantou, com os Novos Baianos ou em discos solo antológicos como "O Que Vier Eu Traço" (78), autores como Waldir Azevedo, Ataulfo Alves, Luiz Gonzaga, Ernesto Nazaré, Jacob do Bandolim, Lupicínio Rodrigues, Jorge Ben, Johnny Alf.
Se Baby não é up-to-date como Fernanda Abreu ou Chico Science, compensa o descompasso com sabedoria emepebística e um vozeirão descolado (e desvairado) que brigam com o pastiche dos arranjos -e ganham disparado.
A faixa-título, por exemplo, é um rap sobre Jesus em que o coro grita: "Todo mundo junto no um", remetendo diretamente à hermenêutica de Jorge Ben (Jor) em "A Tábua de Esmeralda" (74), o disco brasileiro mais influente sobre a geração 90 (mangueboys especialmente).
Em "Bom Demais" (como na anterior), Baby mostra que faz o que quer com a voz, ofuscando a massaroca (rhythm'n'blues, guitarra, gaitinha e uma levada chupadona de "Gangsta's Paradise", de Coolio) pelo estilo de cantar. Este a evidencia como sintético (e genial) híbrido de Elza Soares com Wanderléa, de vocalises roucos enlouquecidos e um "tchubiú" que é tributo direto à jovem guarda de Roberto Carlos e seu séquito.
Aí vem "Baby Toque", que parece à primeira hino loucão de esoterismo: "Se liga no toque/ sinal do universo/ conspirando a favor". Seria mera piração, não fosse tributo mal escondido a "O Toque", canção do mais importante disco de Rita Lee, "Fruto Proibido" (75). Em batida funk-dance.
Não mais cósmica ou telúrica, aqui ela é não mais que "Bárbara", na faixa mais coquete do CD. "Quando transo transito em meu transe", alucina em surrealismo à Jorge Ben -e pronuncia "Barbará" como Nara e Bethânia pronunciavam "Carcará". História.
"Fone Sex", de letra tão ou mais surreal que as anteriores ("Nosso amor por um fio/ nosso amor como um rio/ transbordando som e orgasmo pelo fio do telefone"), resgata a Baby bem-humorada -e não muito bem-sucedida.
Mas faz lembrar o quê? Que ela já já interpretou Assis Valente, o compositor que transformou Carmen Miranda em Carmen Miranda. E que, para Baby passar à história como segunda Carmen Miranda, só lhe falta um Assis Valente.
Na falta, as letras seguintes -"Fazendo Charme", "O Jarro" (sobre discos voadores: "Você apareceu no céu brilhando/ um jarro de barro bojudo, suave/ barriga de grávida, bola de cristal/ um jarro de lata, de prata, de bruços, de nave/ de Natal, de Carnaval")- são puro besteirol, nonsense involuntário que pode fazer de "Um" a piada da temporada.
Mas são as letras que Baby tem a oferecer, tendo optado, entre o empresariado e a piração, pela última. O mundo não é um lugar que ela compreenda muito bem, e essa foi a música que lhe restou.
Houvesse compositores dignos da grandeza de sua voz, houvesse novos Novos Baianos e houvesse justiça, Baby estaria fadada, com Nara e Clara, a logo mais ser reconhecida como figura-síntese da história feminina da MPB na segunda metade do século 20. Doidona ou não, pois Baby é do Brasil e tudo é "Um".
(PAS)

Texto Anterior: Baby do Brasil é dance music (por que não?)
Próximo Texto: Novos Baianos planejam volta
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.