São Paulo, quinta-feira, 6 de março de 1997
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Prepare-se, Austrália: 'Dingo' Dave está chegando

DAVID DREW ZINGG
A CAMINHO DA AUSTRÁLIA

Com o pé na estrada outra vez, yeah!
Ou, melhor dizendo: Com a bunda no avião outra vez, yeah!
Desta vez, a caminho da Austrália.
O velho "Dingo" Dave vai ficar com a bunda em forma de waffle depois de passar 18 malditas horas sentado num maldito avião, meu amigo.
Na verdade, Joãozinho, estou numa expectativa muito grande em relação a minha viagem à Austrália, por duas razões: 1) nunca antes estive lá; e 2) ouvi falar que tudo na Austrália é de cabeça para baixo.
O dramaturgo George Bernard Shaw, que era irônico e engraçado, mas costumava errar em suas previsões e afirmativas (afinal, era irlandês), certa vez se referiu a alguém dizendo que "é um sujeito muito simpático -ninguém poderia adivinhar que nasceu na Austrália".
A Austrália tem muito mais em comum com o Brasil do que com os ingleses que a inventaram. É um país tão extremamente informal que produziu um ministro das Relações Exteriores que recentemente pronunciou a palavra f... em público, durante viagem oficial à África do Sul.
Os ingleses provavelmente vêem seus primos antípodas como coloniais nativos criadores de ovelhas, vestindo shorts e uma versão imensa do chapéu de cowboy, enfeitada com rolhas penduradas da aba, para afastar moscas.
Como o brazuca, o "aussie" tem a tendência a se expressar fisicamente. Parece que sua norma geral é abraçar tudo o que vê pela frente. Ele chama a tudo e a todos pelo primeiro nome, com a possível exceção das pedras.
Tio Dave prevê que vai se sentir perfeitamente em casa nesse país enorme e quase novo. Já ouvi dizer que os "aussies" são sujeitos que gostam de praticar o que chamam de "booze-up". Esses excessos no consumo de bebidas fortes frequentemente acabam num "bocejo em tecnicolor", ou "chunder".
Esses termos evocativos significam, no linguajar "aussie" de baixo calão, uma sessão de vômito, muitas vezes praticada no "dunny", ou "casinha" -banheiro-, no fundo do quintal.
"Crocodilo Dundee"
Já que estamos falando em estereótipos, vamos pensar em outra imagem, mais positiva (mas igualmente exagerada), que os australianos fomentam a seu próprio respeito.
É o chamado "Crocodile Dundee", também conhecido como a imagem do "Heróico Australiano Desbravador de Fronteiras".
Sabe-se o quanto os "aussies" curtem essa imagem pelo número deles que usam chapéus de mato ou chapéus de Exército, do estilo usado pelos pracinhas australianos na Segunda Guerra, especialmente quando viajam ao exterior.
Diz o mito do Crocodile Dundee que todo australiano bronzeado, corajoso e em boa forma física é um bandeirante dos dias de hoje. É alguém sempre pronto a rir diante das terríveis adversidades dos desertos desse continente duro e implacável.
Graças às lições de vida que aprendeu com seus professores aborígenes (os verdadeiros indígenas australianos), ele está profundamente afinado com a voz secreta da Mãe Natureza.
É o pioneiro, o desbravador original das fronteiras.
Ele come filés de lagarto silvestre assados sobre uma fogueira de acampamento. Quando não está travando combates mortais -dos quais sai vencedor- com cobras venenosas ou crocodilos enormes, passa boa parte de seu tempo combatendo incêndios florestais.
Será que lembra um pouco a conquista do velho Brasil?
Que tal nos atermos aos fatos?
As fantasias acima descritas são exatamente isso -um folclore australiano que tem mais a ver com vender filmes do que com uma descrição da realidade real.
A verdade chocante é que os australianos, em sua imensa maioria (quase 90%), vivem amontoados em cidades e morrem de medo do "outback" -o enorme interior bravio de seu país. O problema nacional dos aborígenes os deixa profundamente inquietos.
A Austrália está se transformando com grande velocidade, virtualmente minuto a minuto, em função, especialmente, da geopolítica da região da Australásia Maior, na qual ela desempenha um papel crescente.
Assim como o Brasil, inevitavelmente, vai se descobrir mudando em reação às pressões do Mercosul, a Austrália está mudando em reação à influência comercial do Sudeste Asiático.
Antigamente, a Austrália representava a fronteira asiática do colonizador britânico branco. Hoje, graças à maciça migração asiática e aos casamentos mistos, a cor de pele nacional australiana está rapidamente se modificando, assumindo a macia e cremosa tonalidade do mel.
A Austrália tem cerca de 18 milhões de habitantes.
Cerca de 20% dessas pessoas nasceram fora do país, muitas delas na Ásia. E essa conta não inclui os mais de 200 mil habitantes remanescentes dos australianos originais, os aborígenes.
"Jet lag"
Me disseram, em tom de brincadeirinha, que do Brasil à Austrália é apenas um pulinho, passando pela Argentina e atravessando o Pacífico, por trás da Nova Zelândia, até chegar a Sydney.
Estou ficando com "jet lag" grave só de pensar nisso (para quem não sabe, "jet lag" é a sensação de cansaço e confusão que acomete muitas pessoas quando viajam para outras partes do mundo, onde o fuso horário é muito diferente).
Na tentativa de derrotar os efeitos fatídicos de quase um dia inteiro passado dentro de um avião, tio Dave está consumindo comprimidos de melatonina como se fossem M&Ms.
É bem possível que ele nunca mais volte ao normal. Um tio Dave sofrendo de "jet lag" numa Austrália de cabeça para baixo e encharcada de álcool soa como uma receita de problemas com P maiúsculo.

Tradução de Clara Allain.

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