São Paulo, quinta-feira, 6 de março de 1997
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Cenas da favela

OTAVIO FRIAS FILHO

Primeira - "Parece Gaudí", repetia a pesquisadora escalando o morro, debaixo de chuva, sem que os visitantes que tropicavam atrás dela atinassem com a relação entre aquele lugar desolado e o arquiteto catalão do começo do século. "Parece Gaudí", ela insistiu mais uma vez, para se certificar, como fazem os monomaníacos.
Mas como naquele anúncio de videolocadora, em que as pessoas não têm como não dizer "que diferente!" quando entram, ao entrar todo mundo pensou em Gaudí. Era, de fato, uma catedral gótica derretida por um visionário, pontilhada de tampinhas e vidrilhos que conduziam à abóboda central, feita na raiz de uma árvore imensa.
Só que tudo isso contido no espaço de um casebre onde mal dá para ficar em pé, dois metros de frente por uns oito de fundo, a casa do criador do sonho, desse escapismo insano e inútil, um artista, enfim. Consta que é funileiro e nunca soube de Gaudí; não estava lá no dia. Em tempo: a favela tem 35 mil pessoas e 6 locadoras de vídeo.
Segunda - Noutra casa, o espaço disponível está sendo engolido por livros, a cama foi deslocada, o armário atravanca a passagem, a mãe lamenta um pouco, mas não tem como repreender o filho. Estudante de segundo grau, esse rapaz resolveu dotar a favela de uma biblioteca pública. Só cobra de quem atrasa na devolução.
A biblioteca poderia ter o nome de um dos livros de seu acervo, "As Ilusões Perdidas": aqui e ali, no meio de romances baratos e biografias de santos, aparecem as lombadas de Engels, Gramsci e outros clássicos marxistas, o estudo de René Dreyfuss sobre 1964, todo o percurso intelectual dos doadores antes de se livrarem deles.
No meio dos livros, na única mesinha do local, rebrilha um computador de fabricação recente, ainda embalado, presente de um benemérito mais "up-to-date", à espera de ser decifrado pela curiosidade do novo dono, o bibliotecário amador, com quem, aliás, os nossos mais finos colecionadores teriam algo de útil a aprender.
Terceira - Uma casa "normal", os pesquisadores enfatizam as aspas. O núcleo familiar escapou incólume, aqui, do desemprego, da doença, da violência e do alcoolismo, perigos sempre à ronda. O sucesso se cristalizou numa menina bonita de seus 7 anos, a princesinha da casa, que pinta as unhas sob o olhar embevecido da mãe.
Instada a mostrar as fotos do aniversário, a menina escolhe um dos álbuns meticulosamente guardados no armarinho. Vemos as fotos. Nos rostos dos parentes, mais sombrios quanto mais afastados, assoma o reflexo nordestino do sertão, as privações da mudança, tudo redimido pela mesa exultante de bolo e guaraná.
O pai, sósia de Lech Walesa, talvez tire a família de lá. Para muitas pessoas, a favela é um purgatório, um lugar de ascensão social -lenta, difícil, mas ascensão. Quase tudo é aceitável, menos essa lentidão que desperdiça tanta vitalidade em horizontes tão estreitos, como mostra a catedral esculpida pelo nosso Gaudí.

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