São Paulo, sexta-feira, 7 de março de 1997
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Austrália leva delicadeza ao Oscar

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Se não tivesse outro mérito, "Shine - Brilhante" valeria pela relação que cria entre música e astrologia.
A música é a vida, a paixão, o terror e a loucura do pianista australiano David Helfgott (Geoffrey Rush), um menino-prodígio que, a horas tantas, sucumbe à pressão e tem um sério colapso nervoso.
A astrologia vem da mulher que conhece muito tempo depois, já maduro, e a quem propõe casamento. Ela hesita. Ele diz: "Consulte os astros". Ela (que é astróloga) o faz e opta pelo casamento.
O misterioso encontro entre essas atividades tão diversas talvez venha do fato de ambas serem regidas pela idéia de ritmo.
O som e os astros são ambos coisas móveis, flutuantes. Uma nota ou um planeta não existem em si. Tudo depende do que os astrólogos chamam de conjunção: a posição relativa é que determina o conjunto.
Música e astrologia têm em comum, ainda, a fragilidade. Como tudo que depende da interpretação, vivem na corda bamba: se acertam, vamos ao sublime; se erram, ao ridículo.
Ok, essas coisas podem ser ditas de várias outras atividades, da poesia ao trapézio. No caso de "Shine", no entanto, a fragilidade é uma figura essencial na construção do filme. Ela já está em Peter (Armin Mueller-Stahl), pai do pianista, que tem por mania criar um filho "forte", "vencedor".
Peter não é movido pelo ideário, tão norte-americano, da vitória. Trata-se de um judeu sobrevivente do Holocausto, para quem a força é requisito de sobrevivência num mundo infame.
Existe no pai uma demência básica que, a julgar pelo filme, afetará o filho de forma conflitante: impulsiona seu gênio musical, ao mesmo tempo que tolhe seu desenvolvimento. Seu amor deriva em hiperproteção; esta, em opressão febril.
Em todo caso, o essencial no filme de Scott Hicks não vem da ambiguidade da figura paterna, ou de uma possível propensão psicótica de David.
Cada traço de "Shine" chama a atenção para a fragilidade da vida, seu caráter transitório e precário.
Nesse sentido, não deixa de lembrar "O Piano" (1993), de Jane Campion, outro filme australiano delicado (e sobre a delicadeza). Tem sobre este a vantagem de não naufragar num final demagógico, embora dê uma desnecessária derrapada sentimental.
Se "Shine" não chega ao Oscar como favorito, é menos por seus possíveis (e poucos) defeitos do que por fazer acintosa propaganda do tabagismo.
Esse pecado talvez involuntário -mas capital para os padrões atuais dos EUA- deve-se mais ao personagem. Helfgott é um fumante inveterado: é capaz, quando alguém lhe dá uma carona, mas diz que não suporta cigarro, de sair do carro e seguir a pé.
Não é uma atitude do filme. Momentos assim dizem respeito à dificílima sociabilidade do pianista. Dela, no mais, o ator Geoffrey Rush se desempenha de forma notável. Inferior, apenas, à discrição que Armin Mueller-Stahl usa para dar conta do complexo personagem do pai.
Nisso, e em vários outros aspectos, "Shine" é quase a exceção de um Oscar cheio de mediocridades.
(IA)

Filme: Shine - Brilhante
Produção: Austrália, Inglaterra, 1996
Direção: Scott Hicks
Com: Geoffrey Rush, Armin Mueller-Stahl
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes sala Carmem Miranda, Calcenter, Morumbi 5 e circuito

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