São Paulo, sexta-feira, 7 de março de 1997
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Mauro Rasi ressuscita 'Pérola' em Bauru

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A BAURU

"Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". A frase de abertura do romance "Ana Karenina" (1877), de Tolstói, poderia servir como epígrafe à estréia da peça "Pérola", de Mauro Rasi, em Bauru, no interior de São Paulo (345 km da capital).
Sucesso absoluto durante dois anos no eixo Rio-São Paulo, consagrada como uma comédia autobiográfica ambientada na Bauru provinciana dos anos 50, "Pérola" foi praticamente reinventada na noite de anteontem. Mais do que a peça, foi a mãe do dramaturgo, vivida pela atriz Vera Holtz, que renasceu a partir do palco.
E foi um renascimento difícil, doloroso, que se refletiu na explosão final, quando o público, em pé, aplaudiu durante três minutos atores visivelmente transtornados. Vera Holtz chorava muito. "Eu nunca vi um público nos aplaudir desse jeito", disse a atriz.
Foi como se "Pérola", a peça, depois de conhecer uma trajetória vitoriosa sobre as misérias da vida que pensava redimida, tivesse que se render mais uma vez à ditadura da realidade, que havia lhe servido de matéria-prima. O teatro, mais do que nunca devolvido ao seu solo originário, funcionou como catarse coletiva.
O público de Bauru não foi ver "Pérola" como um espetáculo teatral. Parecia antes movido pela compulsão de buscar alguma verdade próxima e escondida.
Ao longo da apresentação, os risos foram contidos e surgiram nos momentos mais inesperados. O sotaque caipira carregado, o anedotário típico do interior, nada disso provocou risadas.
Uma ou outra gargalhada destoava do clima solene, quase circunspecto, que envolveu a platéia desde o momento em que pisou no teatro da Universidade Sagrado Coração, onde Rasi estudou música na década de 60.
"A comédia foi para o beleléu", disse Mauro Rasi depois da apresentação. "O ar estava grave, carregado, o drama mexicano tomou conta de tudo", comentou.
Com os olhos marejados, fazendo força para disfarçar o impacto de ver sua vida exposta no palco, o pai de Mauro, Oswaldo Rasi, o "seu Vado", repetia aos atores no camarim: "Assim vocês ainda vão me matar do coração".
Voltando-se para Sérgio Mamberti, que o interpreta na peça, Vado disse: "Você me renova". Minutos antes, quase no final da peça, Mamberti dizia, diante da morte de Pérola: "E agora, como eu vou fazer para continuar vivendo sem essa baixinha?".
A forma que "seu Vado" encontrou para retribuir foi a mais prosaica. Distribuiu garrafinhas descartáveis de Coca-cola com pingas caseiras feitas por ele próprio. Pinga de caju, de goiaba, de menta, de tangerina. As mesmas são citadas ao longo de toda a peça.
A sobrinha do autor, Natália Rasi, 15, chorou muito. "A Vera faz igualzinho o jeitinho da minha avó", disse. Na peça ela pôde ainda ver seus pais, Danilo e Elisa (irmã de Rasi), interpretados por Edgar Amorim e Anna de Aguiar. Considerou "um pouco cruel" a imagem que o tio fez deles.
Cruel ou não, a estréia de "Pérola", em Bauru, trouxe à tona, como num vulcão, o sentido mais íntimo e embaraçoso da peça, que é a reconciliação entre mãe e filho. Foi Tolstói quem disse, descreva a sua aldeia e estarás descrevendo o mundo todo. E anteontem, Bauru ficou do tamanho do mundo.

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