São Paulo, domingo, 9 de março de 1997
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Déficit não é 'esquisito', afirma Franco

COSETTE ALVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar da ampla aprovação revelada pelas pesquisas, o Plano Real vem sendo crescentemente objeto de críticas, que partem não mais unicamente de políticos e economistas de esquerda.
Os alvos prediletos dos que vêem o plano com apreensão são os juros altos e a política cambial. Alegam que a taxa de câmbio está provocando déficits comerciais elevados que -mesmo financiados pelo ingresso de capitais- representam ameaça séria em prazo maior.
A indústria encontra dificuldades para concorrer com a produção estrangeira, muitas empresas são vendidas e o nível de emprego está em queda.
A insatisfação dos críticos tem nome e endereço: Gustavo Franco, 40, diretor de assuntos internacionais do Banco Central, defensor mais vigoroso da atual política econômica.
Na entrevista que segue, Franco diz que o déficit externo não ameaça o Real. O maior inimigo do plano, em seu entender, é a complacência. "Eu acho que a maior ameaça é achar que não é preciso mais sacrifício e que todas as coisas que são politicamente custosas não precisam ser feitas", diz.
E alerta: "O déficit fiscal que nós temos ainda não é, de jeito nenhum, aquilo que nos daria conforto para ter a economia estável".
*
Folha - A taxa de câmbio resiste à política cambial adotada desde março de 1995, com o déficit comercial projetado para US$ 12 bilhões para este ano?
Gustavo Franco - Não acho que o número chegue a isso. Mas não é nada diferente do que acontece com as Coréias e outros países por aí -e ninguém se assusta.
Folha - De onde vem a certeza de que esse câmbio resiste?
Franco - Da experiência internacional. Muitos países têm números dessa magnitude, notadamente na Ásia (além da Coréia, a Malásia, Tailândia e Indonésia), Chile e Colômbia.
Folha - É verdade que o câmbio foi de R$ 0,83 por dólar no segundo semestre de 94 apenas como expediente para evitar o rápido ingresso de capital decorrente do sucesso do Plano Real e a alta probabilidade de eleição do candidato FHC? E que depois foi deixado nesse nível apesar das divergências sobre isso entre os autores do plano?
Franco - Eu acho que isso é um delírio.
Folha - O sr., num artigo, afirma que o câmbio é determinado pelo mercado como o preço das bananas. Como é possível compatibilizar essa afirmação e a política de bandas adotada desde março de 1995. Existem bandas para preços de bananas?
Franco - Não, mas posso imaginar situações onde a banana é tão importante para um país, que se fazem coisas para controlar o preço da banana. Em relação ao café, há países que fizeram intervenções de vários tipos, inclusive bandas, para influir no preço. Inclusive esse país aqui.
Folha - O ingresso de capitais continuaria forte se tivéssemos um déficit muito acima de US$ 12 bilhões?
Franco - Eu acho que o déficit é um problema que está longe de ter a importância que as pessoas atribuem. Eu não fico impressionado.
Acho que as pessoas tomam, erradamente, o déficit comercial como alguma medida de fracasso. Como se significasse prejuízo ou algo assim. Isto está inteiramente equivocado. Não tem nada que ver com nada.
Folha - Dá para o sr. explicar um pouco, por que é que isso está inteiramente equivocado e por que não tem nada a ver com nada?
Franco - Porque o superávit não é necessariamente bom, assim como o déficit não é necessariamente ruim. Na verdade, eu acho que é melhor ter déficit do que superávit. E ter déficit grande não quer dizer nada de especial.
Se for muito grande é claro que você pode ter problemas. Mas na situação que nós vivemos hoje, isso não é problema nenhum. Temos abundância de recursos de outras fontes, inclusive geradas pelo próprio comércio, que fazem que isso seja menos importante.
Folha - Por que é melhor ter déficit do que superávit?
Franco - Porque é melhor ter poupança externa do que despoupança externa. O mega-superávit é uma criatura de tempos de crise: fora desse contexto não faz sentido algum.
Folha - E como o sr. explica o receio dos economistas e do mercado em torno desse tema?
Franco - Acho que o Brasil ainda não se acostumou com a idéia de ser um país normal. Parte da normalidade de uma economia emergente é ter déficits comerciais. Durante muitos anos nós nos acostumamos com a situação de crise externa, em que o resultado comercial é importante. Isso ocorreu nos anos 80, mas foi uma coisa excepcional.
Hoje, quando voltamos ao que sempre fomos, um país emergente que cresce, que precisa ter déficits comerciais, achamos que isso é esquisito. Não é esquisito. Esquisito era ter superávit.
Folha - Por que é esquisito ter superávit?
Franco - É esquisito porque o Brasil não tem excesso de poupança interna: tem é escassez. É esquisito o Brasil exportar poupança.
Folha - Como acha que o ingresso de capitais e empréstimos vão ser remunerados no futuro se não existe nenhum investimento para exportações? É razoável supor que exportaremos o que hoje é vendido no mercado interno, como televisões apenas montadas aqui, telefones celulares ou automóveis?
Franco - Eu acho que é razoável supor que sim. A abertura fez da economia brasileira uma economia onde as empresas são competitivas. Portanto, para uma empresa que está localizada em Santa Catarina mandar mercadorias para São Paulo ou para o Canadá é a mesma coisa.
A exigência em termos de controle de qualidade, em termos de pontualidade e tudo mais, hoje em dia é a mesma, porque a empresa nacional precisa, no mercado interno, se comportar de uma maneira que antigamente só existia quando se tratava da exportação.
Hoje o Brasil é competitivo, antes não era. Por conta disso, no futuro, provavelmente, exportaremos muito mais do que jamais exportamos. Mas é uma coisa que vai vir com o tempo. É preciso ter paciência para vê-la desabrochar.
Folha - Como ficam as exportações se os trabalhadores pedirem aumento de salário baseado no aumento de produtividade?
Franco - Podem não ficar mais competitivas. Mas, com isso, vai acontecer uma outra coisa boa, que é a melhoria na distribuição de renda. De qualquer jeito é bom.
Folha - O Banco Central tem gasto grandes quantias de recursos para o pagamento de juros fixados pelo próprio banco. O Tesouro Nacional é simplesmente chamado a pagar. Fala-se em Banco Central independente. Não haveria necessidade agora de Tesouro Nacional independente?
Franco - A política monetária pode fazer a taxa de juros maior do que ela seria se considerada apenas a agenda de endividamento do Tesouro. Pode, por outro lado, fazer essas taxas de juros menores se o Banco Central fabricar dinheiro.
Só que esse Banco Central não fabrica dinheiro. Então a taxa de juros não pode cair abaixo de um certo ponto, que é onde ela precisa estar para poder o Tesouro tomar emprestado. O Tesouro, hoje em dia, toma emprestado alguma coisa como R$ 40 bilhões todo ano. E isso, evidentemente, faz a taxa de juros ficar alta.
Folha - O Banco Central pretende operar no mercado de futuro e derivativos? Como isso se compatibiliza com a determinação da taxa no mercado?
Franco - Primeiro, não há essa intenção explícita. É apenas uma possibilidade. Segundo, seria uma intervenção como qualquer outra, e, podemos fazer, como podemos não fazer.
Folha - Os gastos com o Proer acabaram? Quanto foi gasto e quanto será gasto ainda? Está previsto no orçamento?
Franco - A despesa total do Proer vai depender muito do retorno dos empréstimos que foram feitos ao longo do programa. Num cenário ruim, ele custará ao longo de vários anos algo como 1% do PIB. O que é muito pouco diante do desastre que ele preveniu.
Folha - Como se comparam os gastos com os juros mais Proer relativamente ao que foi liberado do Orçamento para o Fundo de Estabilização Social?
Franco - As coisas não se comparam. O Proer é um programa de empréstimos de emergência, e o Fundo de Estabilização Fiscal é um mecanismo de desvinculação de receita.
Folha - A nova quadra do capitalismo gera pouco emprego. Isso é um problema para o governo? O Real eliminou 755 mil empregos, segundo dados do Ministério do Trabalho. Qual a sua opinião sobre isso?
Franco - Os empregos foram eliminados notadamente na indústria. Todavia, a taxa de desemprego se manteve mais ou menos estável, se não caiu um pouquinho, com o Real. O setor de serviços absorveu esses empregos tranquilamente. Não se confirma, por enquanto, ao que se sabe, essa teoria de que o capitalismo reduz o emprego. Acho que muita gente adoraria que houvesse essa desgraça para poder construir, a partir daí, a sua plataforma.
Folha - Poderíamos crescer mais depressa do que estamos?
Franco - Poderíamos, mas o processo de crescimento econômico é delicado. Contam-se nos dedos da mão os países que ao longo da história da humanidade cresceram à taxa de dois dígitos por vários anos sucessivamente. E sempre que isso ocorre há uma conjunção muito especial de fatores, todos na direção correta.
Nós, recém acabamos de sair de uma doença seriíssima. Ainda estamos numa espécie de convalescença, arrumando a casa. Não é de esperar que o Brasil cresça 10%. Estamos reconstruindo a capacidade de crescer 10%, mas leva algum tempo.
Folha - Qual a sua expectativa de crescimento para os próximos dois anos?
Franco - Eu acho que são boas. A cada ano, talvez, nós possamos crescer um pouquinho mais, aumentando a taxa que a gente entende que seja sustentável.
Folha - Qual é a taxa sustentável?
Franco - Eu vou me abster de dar um número. Mas fazendo as coisas corretas, essa taxa possível fica cada vez maior.
Folha - O sr. acha que as importações atuais são mesmo de bens de capital que aumentarão a produtividade brasileira no futuro?
Franco - Assim dizem os números.
Folha - Quanto é o gasto em bens de consumo supérfluos?
Franco - Eu não sei quanto é. Mas não tem nada mais antiquado, preconceituoso, tolo, do que a idéia de consumo supérfluo. Todo o consumo que não seja a cesta básica "politicamente correta" é supérfluo. E por causa disso tem que ser proibido? Isso é uma bobagem.
Folha - Qual o inimigo mais sério do Plano Real? Déficit público ou déficit comercial?
Franco - O inimigo mais sério, sem dúvida é o déficit fiscal. É aí que toda a sustentabilidade da estabilização se produz. O problema das exportações é de outra ordem.
É um problema estrutural, relacionado com nossa competitividade, que nós passamos vários anos deteriorando e agora estamos reconstruindo. Estamos reconstruindo a partir da abertura, a partir de uma nova realidade empresarial, que faz com que as empresas privadas brasileiras se esforcem para serem competitivas.
São problemas diferentes. Um é um problema de manutenção da estabilidade, outro é um problema ligado ao tamanho que terá nossa prosperidade.
Folha - A redução do déficit público pode ajudar nas exportações?
Franco - Da mesma forma que um atleta que fica curado da tuberculose tenderá a melhorar o seu desempenho.
Folha - Como a privatização ajuda o déficit comercial?
Franco - Ajuda porque o Estado se livra de responsabilidade em investimento -portanto, de despesas. Privatizam-se não só coisas que dão prejuízo, como a Rede Ferroviária, ou estradas, que o Estado teria que gastar um dinheirão para recuperar. Mas também uma Vale do Rio Doce, que dá dinheiro para cancelar uma dívida que custa mais caro do que a empresa rende ficando conosco.
Folha - O dinheiro da venda de estatais deve ser usado para investimento de infra-estrutura ou na redução da dívida pública? O que ajuda mais as exportações?
Franco - Eu acho que não é questão de exportações. É uma questão de finanças públicas. A dívida pública nos custa 9% ao ano em dólares. A Vale do Rio Doce nos rende quando muito uns 2%. Então, para nós, ela dá prejuízo. Folha - Qual a sua opinião sobre o Congresso Nacional?
Franco - Acho que o Congresso Nacional é um retrato do Brasil. Não é nenhuma perversão do Brasil e não é nenhuma glorificação do Brasil. É apenas o Brasil do jeito que ele é.
Folha - Na sua opinião, qual a grande ameaça ao Plano Real?
Franco - Eu acho que a maior ameaça ao Plano Real é a complacência. É achar que as coisas já estão feitas. Achar que não é preciso mais sacrifício e que todas as coisas que são politicamente custosas não precisam ser feitas -ou que é uma besteira fazê-las. Achar que não é preciso fazer reformas, que tudo está mais ou menos bem. Não está! Nós corremos risco.
O déficit fiscal que nós temos ainda não é, de jeito nenhum, aquilo que nos daria conforto para ter a economia estável que queremos. A despesa pública, do jeito que ela é hoje, impede que o governo possa gastar dinheiro no que importa, no combate à miséria, na saúde ou na educação.
Folha - Que cenário ajudaria a consolidar o Real?
Franco - Não só é preciso reduzir a despesa pública, para poder com isso equilibrar as nossas contas e viver dentro dos nossos próprios meios, como também um esforço extra para reduzir despesas de coisas que não são prioritárias em nome de coisas que são prioritárias.
Coisas como investimentos em infra-estrutura é o setor privado que tem que fazer. Por isso é importante privatizar a energia elétrica. Ser auto-suficiente em petróleo não tem mais cabimento. Comprar no exterior é mais barato. O dinheiro, a gente gasta com a fome, que é muito mais urgente.
Folha - O sr. é chamado de neoliberal. Aceita ou acha que nos dias de hoje não existe mais ideologia? Acha que todos pensam da mesma forma?
Franco - Eu acho que para o pensamento nacionalista de esquerda e de direita é importante criticar as políticas de governo -e nada melhor nesses domínios do que tentar colocar um rótulo ideológico negativo. Acho besteira, mas é parte do folclore. Tudo bem.
Folha - O sr. é tolerante às críticas? Como classifica seus críticos?
Franco - Tem de tudo. Tem as pessoas que tiveram seus interesses ameaçados e que criticam da forma que podem, tem os interesses dos partidos políticos que perderam eleições ou que querem disputar e que obviamente criticam o Real pelos seus interesses políticos. Daí a politização de temas como política cambial. E há críticos sérios, acadêmicos. É parte da paisagem democrática responder. Isso é do jogo, é parte do emprego. Sou pago para ter paciência para escutar essas coisas todas.
Folha - Qual a sua opinião sobre socialismo? Ele morreu mesmo?
Franco - Eu acho que sim. Acho que do ponto de vista de organização econômica a idéia da eliminação da propriedade privada dos meios de produção simplesmente fracassou. Os ideais libertários que estavam na origem dessa idéia precisam de um novo projeto. Que não existe hoje em dia.
Folha - O sr. acha que pode vir a nascer um novo projeto?
Franco - Claro que pode. Embora ache que há certas coisas das quais é impossível fugir. Por exemplo, a democracia liberal participativa. Não dá para pensar em nenhum regime político que não tenha isso. Equilíbrio fiscal é outra condição essencial. Hoje já ficou evidente que não dá para ter desequilíbrio fiscal e inflação alta.
O projeto político que tenta se construir a partir de populismo, autoritarismos redentores, inflacionismo de bom coração ou de esquerda ficaram para trás.
Qualquer novo projeto, de esquerda ou de direita, vai ter que lidar com perguntas a serem respondidas de forma prática e coerente. Como melhorar a distribuição de renda? Como acabar com a pobreza? como crescer? E como não gerar uma inflação alucinante ao tentar fazer essas coisas?
Esse governo tem um projeto que faz sentido, responde a todas essas questões. Algumas pessoas podem gostar ou não. Mas tem. Se tiver outro projeto, ótimo, a gente compete na próxima eleição. Se não tiver, continuamos tocando esse.
Folha - A CPI dos Precatórios, quais as consequências que eventualmente ela pode trazer para o Banco Central?
Franco - Para o Banco Central, acho que nenhuma. Acho que a maior consequência tem que ver com um processo que já vinha ocorrendo devagarzinho, mas que agora fica mais claro, que é o processo de levar para os Estados e prefeituras o mesmo padrão de transparência na gestão das finanças públicas, os padrões de controle e de fiscalização que a área federal tem. A CPI é um marco desse processo.

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