São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Figuras de Sócrates

JOSÉ VERÍSSIMO T. DA MATA

em livro introdutório à questão socrática, que reúne, no final, excertos de diversos autores sobre o tema, Hector Benoit apresenta brevemente as figuras do Sócrates de Aristófanes, de Xenofonte e de Platão. Dessa última retiraram-se os traços gerais da dialética socrática, que consistia principalmente em pôr em crise os saberes dos atenienses, por intermédio da dúvida e da pergunta fundamental "o que é?" e de seus desdobramentos (o que é a justiça? o belo? etc.), sempre incidindo sobre os valores, como observou V. Goldschmidt em "Os Diálogos de Platão". Sócrates investia contra o mundo dos simulacros, embaraçando seus interlocutores, de forma a arrancá-los do mundo sensível e preparar a ascensão ao mundo das idéias, onde se contemplaria -tarefa talvez intangível- a idéia una e indivisível do bem. Então, o filósofo, tendo visto a luz, volveria ao fundo da caverna para demonstrar o que vira.
Conviria, entretanto, alertar o leitor para alguns aspectos do "Sócrates" de Benoit. O primeiro deles é o fato de apresentar a questão socrática, ignorando a platônica. Ora, essas duas questões implicam-se mutuamente. Ignorar qualquer uma delas significa rebaixar o nível de compreensão dos "Diálogos". Enfim, deve-se separar o que cabe a Sócrates e o que cabe a Platão, do contrário se apagará da história um deles. Benoit escolheu "matar" Platão, reservando nótula para seu julgamento sumário: "Estamos (...), a partir de consciente opção metodológica, apenas (...) observando qual é, literalmente, o Sócrates de Platão" (pág. 41). Oxalá essa modesta literalidade seja mais que a visão dos sinais gráficos ou os sons de sua leitura.
Aliás, Benoit instaura verdadeiro tribunal de exceção de idéias, ao "mandar" Sócrates à morte por ter projetado uma nova cidade (o que é muito contestável), sem discutir as acusações dos atenienses (impiedade e corrupção de jovens), as quais não são absurdas, como demonstrou Hegel em suas "Lições sobre a História da Filosofia". Com efeito, a divindade interior ("dáimon"), que Sócrates frequentemente invocava, alargava o campo da liberdade individual do pensador, contrapondo-se aos deuses do povo e às revelações dos oráculos, instâncias da religião cívica. Eis por que Hegel, em suas "Lições", recomenda que não nos limitemos a dizer que Sócrates foi bom cidadão, mas que vejamos sob a acusação de impiedade "o espírito do povo ateniense" e sua reação contra um princípio que considerava funesto. O próprio Platão, em "As Leis" ("Livro 10"), procurará preservar a religião cívica, ainda que com medidas muito duras.
Benoit equivoca-se também, ao afirmar que estaria em descrédito "longa (mas duvidosa) tradição" aristotélica que concede ao fundador da Academia a autoria da teoria das idéias. Importa aqui, a meu ver, distinguir a leitura de Aristóteles da teoria das idéias (da qual há crescente dissidência -Cornford, Festugière, Goblot) da questão da autoria dessa teoria, que o estagirita atribui a Platão. Uma coisa é a teoria das idéias imanentes, que seria socrática, como mostrou Magalhães-Vilhena em seu clássico "O Problema de Sócrates"; outra é a teoria das idéias separadas, que a tradição atribui a Platão. A qual delas estaria se referindo o autor?
Benoit subestima ainda o papel dos aristocratas escravagistas (caso de Platão, por oposição ao de Antístenes, antiescravocrata explícito) nos círculos socráticos e dos escravos na cidade ideal. A propósito, lembre-se que Marx, no "Livro 1" de "O Capital", identificou corretamente na "República" um regime de castas, aproximando-o, entretanto, de forma equivocada, ao sistema escravagista egípcio. Ele teria razão, porém, se reconhecesse na cidade ideal a radicalização do modelo escravocrata de Esparta, a chamada "miragem espartana".
Por fim, cabe notar ainda que Benoit se vale de expressões cujo conteúdo é pouco convincente como "regime (...) tradicional (...) de propriedade" (pág. 76). O que significaria esse "tradicional" na Atenas do século 5º a.C.? -perguntaria o leitor que não se contentasse com a mera "literalidade" do termo. Afinal, a propriedade é dita de muitas formas.

José Veríssimo Teixeira da Mata é doutorando em filosofia grega na USP.

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