São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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CARTA AO INVENTOR DA MODA

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quatro autores escrevem, especialmente para a Folha, histórias inspiradas na experiência que gerou Dolly

Caro Walter,
Muitos perdem o guarda-chuva. Eu perdi a aura. O aqui e agora da minha autenticidade. Estou enredado até a última célula de DNA nessa história da minha reprodutibilidade. Culpa sua. Não adianta você vir com vozinha sonsa de Rita Hayworth, cantando e dançando "Put the blame on Dolly, boy". A culpa do terremoto que causou o incêndio que nos avacalha é sua. Só sua. Seu profetinha de merda, você bem que imaginou que eu tinha vindo ao mundo para, solteiro, inaugurar uma tradição sem antepassados. Ok, você ganhou, Walter!
Sou hoje antepassado de mim mesmo. Serei o Adão da nova bíblia? Em credo minimalista, uma célula vale bem uma costela. É o que dá quando o homem passa das mãos de um deus açougueiro para as assépticas dum cientista. Como diz o Lulu Santos, assim caminha a humanidade.
Sinto-me mais pobre. Você me dirá, mais rico. Conseguiram me retirar a mim de dentro do meu invólucro, acabar com a singularidade da minha imagem exterior. Não há como continuar cultivando o meu interior. Virei exposição de mim através de todos os outros que são idênticos a mim. Que nome dar a cada um deles? o de xerox? o de replicante? Não há como negar a história. Você se lembra, foi a partir das nossas conversas que você elaborou as teses sobre as tendências evolutivas do Homem nas condições produtivas do capitalismo. Sei que foi assim que você nos imaginou um dia, há 60 anos, me dizendo que era a nossa única e última chance. Nós não seríamos apropriados pelo fascismo. A ameaça então se chamava Hitler.
Vivencio hoje, em pleno capitalismo tardio, o delírio da sua imaginação técnica. Sobrevivo a ele. Será que conseguirei viver sem a minha aura? Muitos entraram na chuva de guarda-chuva e se molharam. Muitos outros entraram na chuva sem guarda-chuva e não se molharam. E eu, sem aura?
Vale este testemunho, possivelmente minha genealogia e testamento.
Caminhando pela Visconde de Pirajá, cruzo com o primeiro. Com o segundo. O quinto. O centésimo. Somos legião hoje na cidade de São Sebastião. Outros se sentem Narciso. Eu me sinto Paradigma. Nesta cidade de 6 milhões de habitantes, logo eu o escolhido. No universo de bilhões e bilhões de habitantes, eu, o Espelho da humanidade futura. Uma célula foi o bastante. Cara de um, focinhos de muitos.
Já não aguentava mais. Hoje ao meio-dia, como um caubói cavalgando pelas ruas de Ipanema, agarrei o primeiro xerox de proveta pelo laço da sedução. Empurrei-o pra dentro do táxi, jogando-o pro banco de trás. E mandei o motorista tocar pro centro da cidade. Instituto Félix Pacheco.
A pedido meu, tiraram as nossas impressões digitais. Com o risinho cínico de quem manuseia mão de cadáver no IML, o dactiloscopista me disse são igualzinhas. E em seguida perguntou ao meu replicante se ele não queria aproveitar a ocasião e tirar uma carteira de identidade. Nesta cidade, sem papéis, você sabe. Ele -e apontou para mim-, ele não põe os pés na rua sem os dele, acrescentou.
"Como?", rebelei-me.
"Como, o quê?", me jogou de volta, na cara. "Ele também tem os seus direitos."
"Mas não o meu nome", afirmei hesitante.
"Não há tantos João da Silva por aí", ponderou. "Um a mais, um a menos."
"É diferente", retruquei. "João da Silva só é igual a outro João da Silva em nome de Deus e do padre no ritual da Igreja. Aqui, não."
E adiantou o meu argumento? Não, não adiantou, por isso insisti:
"No teste de dactiloscopia João da Silva é diferente de João da Silva. É ou não é? Na certidão de idade João da Silva é diferente de João da Silva. É ou não é? No guichê do banco...".
"Vocês são iguais em nome da Ciência", me interrompeu.
"A Ciência não me diz nada. Quero a Teologia. A boa, a verdadeira. Tomista, de preferência. A que nos deu, a cada um, forma e alma. Quero a Lei. Quero o cartório..."
"Quer ou não quer a carteira?" O dactiloscopista bateu o martelo no balcão de atendimento do Félix Pacheco, dando por encerrada a discussão.
"Quer ou não quer a carteira?", repetiu.
"Quero", respondeu o replicante. E o dactiloscopista foi lavar as mãos.
Pergunto-lhe, meu caro Walter: sou homem, depois desse falimento? Não é a minha própria identidade que está sendo alterada? Será que outro que não eu conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises de angústia e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta honesta sua, e não me chame de retrógrado, por favor.
Seu velho amigo.

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