São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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A PEDEMBEQUE - A VINGANÇA DE DOLLY

JOSÉ J. VEIGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No tempo em que os animais falavam -verdade é que alguns ainda falam, mas isso acontece é lá no cerrado, principalmente naqueles barracos de vidro fumê que lá chamam de palácios; e como falam!- aconteceu um episódio assaz estapafúrdio. Era o tempo do Império, o segundo da nossa história. D. Pedro do mesmo número era um monarca dizem que esclarecido, porém mais interessado no que se passava na Europa do que aqui, onde Sua Majestade supostamente tinha domicílio. O que aconteceu foi o seguinte:
O imperador era muito ligado à França, onde tinha parentes; mas de vez em quando, nas suas fugas do império onde reinava (ninguém é de ferro), fazia o sacrifício de dar uma passada na Inglaterra, lugar de bretões carecentes do refinamento gaulês. Mas lá também inventavam alguma coisa, tanto que fizeram a Revolução Industrial.
Numa parada na Inglaterra quando a caminho de outros reinos, inclusive o da Rússia, onde houve o episódio do mingau oferecido ao czar e que entrou para o anedotário, teve S.M. encontro com lorde Arthur J. Banks, rico criador de ovelhas no Lancashire e muito interessado também em cinema, tanto que era proprietário de uma produtora que fez filmes de qualidade, como "O Mistério da Torre", "O Homem do Terno Branco", "Encontro Fugaz" etcétera; e tinha investimento em pequena empresa de Cataguases, na província de Minas Gerais, fundada por um mineiro chamado Humberto Mauro, que durante certo tempo conseguiu que o Brasil tivesse um cinema com identidade própria.
Na visita que fez a lorde Arthur no Lancashire o imperador Pedro 2º se encantou com as ovelhas sadias, roliças e cheias de lã (a visita foi marcada para antes da tosa justamente para impressionar o imperador e assim quem sabe aumentar as importações de lã inglesa pelo Brasil). Mas naquele rebanho todo S.M. notou uma ovelha aparentemente sadia, mais sadia e mais mimosa do que as outras. Porém vivia arredada; pastava e berrava como as outras para ouvidos não muito afinados, o que não era o caso dos do nosso imperador. S.M. percebeu qualquer coisa diferente naqueles berros. Comentou isso com o lorde, que concordou.
- Vossa Majestade também notou. Então não é cisma minha e de lady Banks. Estamos "flabbergasted". Não é cria nossa. Apareceu aí ninguém soube me explicar como.
- Que coisa! -exclamou o imperador. Vai fazer o que com ela?
- Sei lá. Nem quero que ela cruze com carneiro meu. Preciso me livrar dela o quanto antes. Nem que seja sacrificando.
Isso comoveu demais o imperador, homem sabidamente humanitário, embora essa palavra não se adeque a animais. Era reconhecida a cordura com que S.M. tratava os negros que criava em sua fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, para serem vendidos no mercado de escravos quando já crescidinhos.
- Então vamos fazer o seguinte -propôs S.M. O senhor me vende esta ovelha. Eu a levo para o Brasil. Quem sabe se lá, mudando de clima, ela muda também?
- Olhe, majestade. Vamos fazer de outra maneira. Eu lha (assim se falava naquele tempo, talvez por influência antecipada do gramático Jânio Quadros) ofereço como presente.
Encantado ficou o imperador, que dali seguiu para outras terras. Feliz de se ver livre da ovelha esdrúxula sem precisar de sacrificá-la, lorde Arthur apressou-se em despachá-la de navio para o Brasil, consignada ao destino indicado por d. Pedro, que era uma estância na província de São Pedro, de propriedade do sr. Idelfonso Simões Baptista, feito visconde pelo imperador. Para despachar a ovelha era preciso dar-lhe um nome, exigência da transportadora. Lady Banks sugeriu Dolly.
O que ninguém sabia era que a ovelha esquisita, que tinha ido parar não se sabe como na fazenda do lorde, era o que muito mais tarde ia se chamar de clone, isto é, animal ou planta produzida por processo assexual partindo de uma célula determinada e que sai com as características dessa célula. Sucedeu que um cientista meio zanzo, chamado dr. Jekyllhyde, andava fazendo umas experiências de genética animal na Universidade de Edimburgo com o objetivo de produzir seres vivos por processo assexual. Esse cientista era amigo do escritor também escocês Robert Louis Stevenson, autor do romance "O Médico e o Monstro", que produziu calafrios em leitores do mundo inteiro.
No seu laboratório de Edimburgo o dr. Jekyllhyde juntou pelos de ovelha fêmea com pelos de carneiro da fazenda que Stevenson possuía num lugar de nome esquisito (Kinkudbright) em uma proveta, acrescentou um soro que só ele conhecia. Sacudiu, levou ao bico de Bunsen pra aquecer. Ficou atento. Algum tempo depois, ao esfriar, aquilo virou uma pasta gelatinosa. Essa pasta foi dada a comer a uma ovelha da fazenda de Stevenson. Essa ovelha engravidou e deu à luz a ovelhinha que espantou o imperador e o casal Banks.
Na estância do visconde Idelfonso a ovelhinha continuava exibindo suas esquisitices. O berro estranho já notado na Inglaterra, agora no Sul do Brasil foi ficando cada vez mais parecido com fala humana -só que ninguém entendia. Soava como "apedembeque apedembeque apedembeque". O imperador, que já havia voltado ao reino seu, foi ver como Dolly estava se virando no novo ambiente. Ouviu-a berrar, achou que ela estava mesmo dizendo alguma coisa. Mas o quê? Apesar de versado em muitos idiomas e dialetos, S.M. não conseguiu decifrar a fala da ovelha.
Mas não se deu por vencido. Ele já havia trocado correspondência com o célebre foneticista de Oxford, professor Higgins, para decifrar sons dialetais que ouvia em suas viagens e que não conseguia identificar. Gravou uma série de berros de Dolly em um aparelho Pioneer de uso profissional e mandou para o professor Higgins pela DHL.
A resposta não demorou. Em menos de duas semanas o imperador recebia o relatório do professor com a tradução -um recorde de presteza e rapidez, porque na ocasião Higgins estava trabalhando também no teatro, fazendo o papel de Pigmaleão numa peça de Bernard Shaw no West End.
O som que Dolly berrava era o das palavras "I'll pay them back" ("Vou lhes dar o troco"). O bilhete de Higgins encaminhando o relatório, escrito apressadamente em papel timbrado do Garrick Club, terminava com a advertência: "Cuidado com esse animalzinho. Ele vai aprontar. Pode ser um lobo em pele de ovelha. Só espero que não seja 'something ugly'±".
Parece que o professor Higgins estava adivinhando. O que aconteceu -e continua acontecendo- foi mesmo "very, very ugly", como se vai ver.
Um rapazinho que pastoreava as ovelhas do visconde lá no Sul, aproveitou-se de estar sozinho, fora das vistas de outros empregados, com umas ovelhas num banhado, e estuprou Dolly. E esse ato, que cientificamente não podia ter consequência, de fato teve. Gerações e gerações de políticos e governantes que uma vez eleitos já acordam no dia seguinte se imaginando desperdiçados por viverem ao lado de um povo que não os merece; e passam a fazer tudo para mostrar ao estrangeiro que são diferentes desse povo atrasado. Quando viajam, fazem questão de falar língua estrangeira; se empolgam e não percebem os olhares e sorrisos de mofa. É a nostalgia de Kinkudbright.
Oh, Dolly! Não precisavas ser tão cruel com o país que te salvou do cutelo e te acolheu.

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