São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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Despotismo e confusão

Não há por que entender a separação de poderes em termos de hostilidade permanente entre o Executivo e o Legislativo
FÁBIO WANDERLEY REIS
De maneira elaboradamente criptográfica, como no caso das eruditas ironias de Roberto Romano na Folha, ou simplesmente confusas, como nas manifestações de José Arthur Giannotti, denúncias ou advertências de "despotismo", "absolutismo" ou assemelhadas têm sido dirigidas ao presidente Fernando Henrique.
Como avaliá-las? A questão envolvida é a das relações do Executivo com o Congresso e o Judiciário, condicionadas, naturalmente, pelo pano de fundo da opinião popular.
Quanto ao Congresso, parte importante das preocupações manifestadas se dirige, sobriamente apreciada, ao fato simples de que o presidente erigiu ampla base de apoio parlamentar.
Ora, o controle pelo presidente dos recursos institucionais de poder que a democracia lhe faculta não significa ameaça à democracia. Não há por que entender a idéia da separação de poderes em termos de hostilidade permanente entre o Executivo e o Legislativo.
Os comentaristas falam há tempos, a propósito dos EUA, dos males do "governo dividido", e a busca de maioria estável é um imperativo da busca da mera eficiência.
Na verdade, a aglutinação governista no âmbito parlamentar pode mesmo ser vista como bem-vindo estímulo ao rearranjo mais geral das forças políticas, ajudando a talvez superar a fragmentação atual.
Se essa aglutinação recorreu à "política politiqueira", é preciso lembrar que a "grande política" não dispõe de um espaço especial para a sua execução, mas se faz por intermédio das realidades do dia-a-dia -embora cumpra estar atento para o preço simbólico que o realismo terá custado ao presidente, e como esse preço se traduzirá, mesmo instrumentalmente, ou seja, como afetará a capacidade presidencial de liderar com eficácia a reconstrução econômico-social e institucional do país.
Temos, ainda, a questão da enxurrada de medidas provisórias. Mas a enxurrada flui nas brechas de uma legislação permissiva e com o apoio ao menos tácito do Congresso.
Seria claramente impróprio esperar que a busca de eficiência na realização dos objetivos governamentais se detivesse diante de tais brechas, com a autocontenção pessoal do presidente representando a garantia contra os efeitos equívocos de instituições deficientes. Impõe-se, aqui, a tarefa de aperfeiçoamento institucional e legal.
Há, de outro lado, o atrito Executivo-Judiciário. À parte razões fúteis que certamente contaminaram o recente bate-boca, ele parece expressivo de um problema mais sério e profundo do que o que se pretendeu ver nas relações Executivo-Congresso.
Empenhado na eficiência, é característico do Executivo tender a presumir que os fins da ação do Estado, que ele próprio estipula, são objetivos nacionais inequívocos ("Não pensam no Brasil") e que a questão é dispor de maneira adequada os meios.
Mas a democracia se distingue pela problematização dos fins, reconhecendo-os como múltiplos e de compatibilização difícil. Como instrumento por excelência de garantia desse aspecto da vida democrática, não admira que o Judiciário seja alvo frequente da impaciência do Executivo.
Resta a dimensão da opinião popular. A popularidade do presidente é parte importante do jogo entre os poderes, condicionando o suposto "rolo compressor" no Congresso e provavelmente calçando a motivação dos desafios ao Judiciário.
Sejam quais forem as boas razões administrativas que possam assegurar essa popularidade, aqui é que temos um possível "cesarismo" ou "bonapartismo" em potencial: como nas propostas de plebiscito brandidas a propósito da reeleição, em que a consulta popular surgia como corretivo a eventuais decisões do Congresso, a conexão direta entre o líder e as ruas poderia vir a transformar-se em fator de atropelo às instituições.
Mas o curioso é que aqui é que as coisas se confundem de maneira desconcertante. Se o presidente evitou apoiar o plebiscito como tal, apesar de falar em "voz das ruas", a consulta popular não só não foi objeto de clamor análogo às denúncias correntes de despotismo, mas foi mesmo unanimemente ungida em recurso sacrossanto.
O governo FHC me parece caracterizar-se por claro déficit de investimento intelectual, com seu esforço de "aggiornamento" econômico podendo ser visto também como acomodação meio preguiçosa às perversidades das novas tendências mundiais. Mas há perplexidades para todos.

Fábio Wanderley Reis, 59, cientista político, doutor pela Universidade de Harvard (EUA), é professor-titular aposentado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (Ibec).

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