São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 1997
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Alerta à sociedade

GUIDO ANTONIO ANDRADE

Ser vítima de crime é horrível. Quem sofre na pele um assalto, o assassinato de um parente ou o sequestro de um amigo conhece a sensação de humilhação, os momentos de horror, as sequelas psicológicas que o crime deixa.
É natural, portanto, que a vítima exija a punição dura, implacável, do criminoso. É seu direito. É dever do Estado. O que não se pode é confundir punição com vingança cega, sob o risco de o Estado contribuir para o aumento da violência. Uma violência que, em determinado ponto, pode atingir o perigoso descontrole.
Daí a fundamental importância da Campanha da Fraternidade da CNBB, para 1997, voltada exatamente para a melhoria das condições de vida nas prisões.
Todo crime deve ser punido com o rigor da lei. Seja a pena a prestação de serviços comunitários, seja a privação de liberdade por muitos anos. Seja o criminoso branco ou negro, seja pobre ou rico. É a impunidade que pavimenta o terreno para o crime.
Essa lição ganhou força com o recente sucesso da experiência de Nova York. Lá, as autoridades obtiveram êxito na repressão ao grande crime (homicídio, tráfico de drogas, estupro) golpeando com dureza os pequenos criminosos: punguistas ou menores vendedores de entorpecentes.
A punição firme do delinquente, porém, nada tem a ver com vingança. A sociedade não pode permitir que o homicida seja linchado. Sob o risco de coonestar a instauração do caos; dissolver o tecido que permite a convivência e a resolução pacífica de problemas.
A sociedade também não pode permitir que um condenado cumpra pena que não lhe cabe. Não é dado ao Estado impor a quem custodia tratamento cruel e desumano. O criminoso condenado à privação de liberdade, ao sair da cadeia, teve quitadas suas dívidas para com a sociedade.
Infelizmente, o que o Brasil aplica a seus presos é a vingança, não a justiça, nem a punição. Senão, como explicar as masmorras medievais a que são atirados os presos, país afora? Sem tratamento de saúde, os detentos apodrecem; com frequência, vítimas da Aids convivem -na mesma cela- com presos sadios.
A situação é ainda pior nos xadrezes dos distritos policiais da Grande São Paulo. Os próprios delegados, em particular, reconhecem o direito do preso de tentar fugir a qualquer custo. Uma blitz recente da Comissão dos Direitos Humanos da OAB-SP constatou, em um distrito, celas transformadas em verdadeiros "edifícios térreos". Explica-se: por falta de espaço para dormir no chão, dezenas de detentos penduravam suas redes em níveis sucessivos, nas grades.
Neste momento em que a Campanha da Fraternidade da CNBB começa a projetar-se, expondo as barbaridades que ocorrem nos porões da sociedade, é necessário reconhecer as conquistas já obtidas. Como a decisão do governo do Estado de São Paulo -que tem o apoio irrestrito da OAB-SP- de desativar em breve a nefasta Casa de Detenção, no Carandiru.
Nenhum sistema prisional eficiente do mundo admite a possibilidade de administrar um verdadeiro vulcão -sempre a um passo de explodir- com 6.000 presos e conhecidos esquemas de corrupção, tráfico de drogas e de influência, envolvendo funcionários públicos.
Outra iniciativa de grande êxito é a gestão comunitária de cadeias, que vem humanizando prisões em cidades como Bragança Paulista; implantou frentes de trabalho (que também revertem em recursos para as famílias dos presos) e reduziu custos.
No caso de Bragança, a reforma da estrutura prisional reduziu as taxas de reincidência criminosa para 5%, contra até 85% em cadeias comuns. Esse modelo humanista, desenvolvido no mesmo Brasil que prima pelas prisões anacrônicas, já é exportado para diversos países.
Mas ainda é pouco. Será que a gestão comunitária de prisões pode ser ampliada por todo o Estado, por todo o país? Será que os novos "cadeiões" -que devem substituir o Carandiru- garantirão condições de vida decentes para os detentos?
Instrumento eficiente para a ressocialização do detento é o trabalho -um direito que o preso tem, até, pela remissão. Ou seja, para cada três dias trabalhados, ele diminui um dia em sua pena. Com o fruto de seu trabalho nas oficinas, o encarcerado pode ajudar no sustento de sua família e, depois de alguns anos, até formar um pequeno pecúlio para apoiar seu reingresso na sociedade.
O Estado pode e deve proporcionar trabalho ao detento. E nem mesmo a falta de verbas pode-se alegar, uma vez que as oficinas podem ser instaladas pela própria iniciativa privada. Outra chaga que deve ser lancetada é a falta da assistência judiciária, motivo de diversas rebeliões de presos e que condena muitos a cumprirem penas superiores às que receberam.
Na verdade, o Brasil está se vingando ilegalmente de seus presos. Essa prática, ao lado da impunidade para crimes grandes e pequenos, faz com que o sistema prisional se transforme em uma gigantesca usina de criminosos. Em cada esquina, em cada farol de trânsito, essa usina se manifesta, cobrando com juros o descaso social. Ainda há tempo.

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