São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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A CPI e o jogo do bicho

CELSO PINTO

Existem crimes novos e crimes velhos surgindo da CPI dos precatórios. Os novos são os mais espetaculares, por suas implicações políticas. Os velhos, contudo, são os que geram algumas das perguntas mais incômodas.
É novo, por exemplo, descobrir que a Constituição de 88 abriu uma brecha para Estados e municípios fazerem caixa emitindo títulos que deveriam ter pago dívidas judiciais (precatórios). Também é novo desvendar como um conjunto de pequenas e grandes instituições financeiras e muitos laranjas se organizaram para se aproveitar dessa brecha. Encontrar cadeias de operações no mercado de títulos estaduais e municipais usadas para lavagem de dinheiro e esquemas de sonegação fiscal, contudo, não é surpresa para ninguém. "Há 20 anos esse mercado funciona assim", lembra um ex-administrador nessa área.
"O mercado não é transparente, não é líquido e não é organizado", observa. "Portanto acaba sendo um ótimo meio para esfriar dinheiro".
Esfriar dinheiro significa gerar um prejuízo fictício numa operação legal, para evitar pagar Imposto de Renda sobre outros ganhos. Inúmeras operações reveladas pela CPI entram nesse figurino, enquanto outras se encaixam no oposto, o "esquentamento" de dinheiro: fazer aparecer como receitas legais dinheiro de origem ilegal. A falta de transparência vai dos leilões às negociações no mercado. É um mercado pequeno, sem liquidez, onde é difícil saber qual é o preço "justo" de um papel. Uma fonte lembra que, no final dos anos 70, o governo do Estado de São Paulo chegou a ter 200 tipos diferentes de papéis em circulação, em formas de remuneração e vencimentos. Como saber o preço "correto" para cada transação?
Por todas essas razões, esse mercado sempre foi um favorito para operações escusas (e evitado por bancos sérios). Mas não está sozinho. A mesma CPI já revelou o mesmo tipo de falcatrua feito, por exemplo, em mercados futuros.
É outro velho favorito do mercado. A forma mais grosseira é a encontrada no caso da Negocial. São operações feitas fora da Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), entre duas partes, registradas em cartório. O formato parece sério, e o contrato usa tantas vezes o nome e a referência da BM&F que um leigo poderia supor que é uma operação normal da bolsa.
Não é. São contratos em que se usa um vencimento de alguma cotação futura (por exemplo, do valor do dólar), onde uma parte perde e a outra ganha. Para ser 100% fraudado, um contrato desse é feito depois que o vencimento já ocorreu, e o registro em cartório leva uma data anterior. É como apostar num cavalo depois que já correu o páreo.
Existem, contudo, outras formas. Se a operação for feita na BM&F, ou registrada na BM&F, é mais difícil (mas não impossível), porque ela estará submetida a alguns parâmetros: a cotação no contrato não pode ficar abaixo ou acima de uma margem de variação.
Mesmo em operações feitas no pregão da BM&F, contudo, existem brechas. Como os negócios são fechados por meio de boletos por escrito, com uma certa margem de tempo para serem registrados, negócios viram prejuízos ou ganhos conhecidos ao longo do pregão, que algum corretor inescrupuloso poderia negociar, apesar da fiscalização da bolsa. A BM&F já puniu membros no passado e tem um plano para substituir os boletos por aparelhos eletrônicos nos quais as operações ficam registradas no exato momento da conclusão.
As alternativas não param aí. Existem formas de esquentar e esfriar dinheiro com ações, com ouro e com outros papéis. "Qualquer mecanismo que transfira dinheiro do caixa um para o caixa dois dá 50% de ganho (pelo imposto não pago)", diz uma fonte. "Nenhuma operação legítima rende tanto."
Se os mecanismos são tão antigos e são tão conhecidas as instituições especializadas no ramo, por que o BC não havia feito antes um esforço sério de punições? Provavelmente pela mesma razão pela qual os doleiros que remetem o caixa dois para o exterior nunca são molestados. No Brasil, existem os crimes que são apurados e os crimes com os quais se convive. É o que torna alguns crimes revelados por esta CPI parentes próximos do jogo do bicho.

E-maill: CelPinto@uol.com.br

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