São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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Crítico troca platéia por palco

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Alberto Guzik, 52, tem 26 anos de crítica de teatro no "Jornal da Tarde" e outras publicações. Com "Um Deus Cruel", que fez sua estréia no festival de Curitiba, trocou a platéia pelo palco.
É sua primeira peça, sobre uma companhia de teatro, dando sequência à experiência com a ficção iniciada no romance "Risco de Vida". É formado ator, mas deixou o palco ainda nos anos 60.
Em entrevista, fala do impacto de passar para o outro lado.
*
Folha - Como foi o salto do jornalismo para a ficção, o salto da crítica para a arte?
Alberto Guzik - Foi demorado. A primeira vez que eu pensei em fazer um texto de ficção foi há 21 anos, em 76. Um amigo meu se matou, eu fiquei muito impressionado e quis escrever essa história. A idéia não vingou, e na década de 90, depois da morte de vários amigos meus, por Aids, a primeira idéia do romance acabou se transmutando no "Risco de Vida". Acabou sendo um retrato dos anos 80, com os filmes, os jornais, os cafés, a vida na cidade.
Folha - Mas não é um retrato por um jornalista.
Guzik - Eu me apaixonei pelo processo de criação, que foi totalmente não-racional, intuitivo. É engraçado, porque eu faço crítica há 26 anos, vai para 27, tenho um livro de história do teatro, milhões de artigos e entrevistas, e quando eu comecei a escrever o romance era outro canal. Não passava pela consciência do jornalista, do crítico. Era uma consciência ditada pela sensibilidade, pela afetividade, pela reação emocional.
Folha - Escrever a peça, agora, dá a impressão de que você, depois do romance, tentou fazer encontrarem-se os dois Guziks que tinham se chocado.
Guzik - O crítico e o ficcionista.
Folha - Tem isso?
Guzik - Não tem muito não. Eu acho que continuo plenamente no processo do ficcionista. E é engraçado, porque a peça... Eu tive a visão de uma trilogia, de romances, um deles a história de uma companhia de teatro dos anos 60 aos 90. Um pouco a história da minha geração no teatro. E comecei. Ficção exige disciplina. A disciplina que eu não tive como ator estou tendo como ficcionista. Eu encontrei a coisa para a qual tenho total vocação, eu acho. Eu comecei a escrever o segundo livro, quando o (diretor) Alexandre Stockler, cujo trabalho eu acompanhava, disse, "faz uma peça de teatro para mim". Eu disse, "imagina, eu não vou escrever teatro, não sei escrever, eu escrevo romances". Mas comecei a ficar seduzido.
Folha - E deixou o romance?
Guzik - Eu fui para Avignon (França), ano passado, cobrir o festival de teatro. Levei o romance no laptop, mas eu levei uma trombada na praça e arrebentou. Daí eu estava com a disciplina de escritor, sem o "laptop". Comecei a escrever a peça, e imediatamente as frases ganharam bocas que eram de um ator e um diretor discutindo no ensaio. Foi, de novo, um trabalho muito guiado pela intuição, uma história que foi se fazendo. E quando eu vi era uma coisa com começo, meio e fim, redondinha. Não é nenhum "Vestido de Noiva", nenhuma revolução. Mas é um depoimento sobre o teatro, uma declaração de amor ao teatro. E foi outra história, ver um texto meu se transformar...
Folha - Você teve crises de autor?
Guzik - Sabe que eu não tive nenhuma? Eu tinha plena consciência que estava escrevendo aquilo para ser mexido. Estava escrevendo aquilo para alguém meter a mão, cortar, ver o que funciona. E eu posso dizer com grande orgulho meu que cerca de 75% do texto foi mantido. O que me espanta no Alexandre é que, sendo um garoto de 23 anos, ele tem respeito ao texto. Depois de uma geração de diretores destruidores que a gente viu por aí, que fazia picadinho do texto... Então, eu não sofri crises autorais. E foi muito pedagógico para mim. Essa coisa de ver o espetáculo ganhar corpo, atores... É tão emocionante. Eu não me emociono com facilidade, mas olha, sinceramente...
Folha - Você chegou a chorar, quando viu?
Guzik - Eu fiquei com lágrimas nos olhos.
Folha - Você é crítico de teatro. Quais foram os conflitos, profissionais, na própria cena?
Guzik - Eu estou tentando equacionar agora. Não é fácil. Por enquanto eu sinto que o exercício da crítica continua sendo fácil para mim. Não que seja fácil, porque é de uma responsabilidade enorme, sempre. É fácil no sentido de que eu não sinto obstáculo moral, pelo fato de estar passando para o outro lado. Ainda não sinto que estou impedido de exercer a crítica enquanto ofício. Mesmo porque eu não sei se este processo no qual estou entrando vai durar. Pode ser a minha primeira e última peça, sabe lá. E o meu ofício é o jornalismo. Eu não penso, nem remotamente, em deixar o jornalismo. Mas talvez um dia venha a acontecer.

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