São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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A escuma turva

"À admiração do bom capucho nem escapava a nudez escandalosa das índias do Maranhão. Os seus olhos -confessa- não se cansavam das linhas harmoniosas dos corpos nus que a civilização não aviltara. Era esse certamente o paraíso bíblico, que já Colombo entrevira nas maravilhas do Orinoco. Ou não estaria longe, como afirmava Vespucci.
Paraíso ou realidade, nele se soltara, exaltado pela ardência do clima, o sensualismo dos aventureiros e conquistadores. Aí vinham esgotar a exuberância de mocidade e força e satisfazer os apetites de homens a quem já incomodava e repelia a organização da sociedade européia. Foi deles o Novo Mundo. Corsários, flibusteiros, caçulas das antigas famílias nobres, jogadores arruinados, padres revoltados ou remissos, pobres-diabos que mais tarde Callot desenhou, vagabundos dos portos do Mediterrâneo, anarquistas, em suma, na expressão moderna, e insubmissos às peias sociais -toda a escuma turva das velhas civilizações, foi deles o Novo Mundo, nesse alvorecer.
Franceses no Canadá, holandeses em Nova York, ingleses na Carolina, Virgínia e Maryland, castelhanos nas Antilhas, Nova Espanha, América Central e Pacífico, portugueses e ainda espanhóis, franceses e flamengos no Brasil, todo o continente se povoou desses adventícios violentos e desabusados. Rapidamente, pelo cruzamento ou pela adaptação, se transformavam em 'vaqueanos' e 'rastreadores' (rastejadores) da América espanhola, em 'coureurs des bois' (mateiros, ou picadores de mato, do Canadá) dos desertos do Norte, no tapejara e no mamaluco bandeirante da colônia portuguesa."

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