São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dinossauros literários dão últimos suspiros

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ponto de Fuga", de Morris West, "Os Devassos", de Harold Robbins, "Redenção", de Leon Uris. Ao todo, 1.470 páginas de intriga, sexo, viagens, lágrimas, declarações de amor, vingança, ódio, ambientes glamourosos. Por que esses livros viram best sellers?
É que eles são escritos para tal. Uma das diferenças entre ler, por exemplo, Robbins e José Saramago, um autor que vende bem no Brasil, consiste na intencionalidade. Qualquer leitor de Robbins, West ou Uris (leia quadro nesta página) percebe que o escritor, quando sentou diante do computador, estava imbuído de uma missão: oferecer a ele, leitor, satisfação imediata, sem nenhum tipo de trabalho intelectual ou esforço psicológico. Uma obra de Saramago não traz nenhuma garantia.
Quem é esse leitor? Os escritores dos anos 70 pensavam num homem adulto, branco, norte-americano, com um cargo executivo médio. Os campeões de venda dos anos 80 e 90 sofisticaram um pouco a coisa, criando outros nichos (a mulher executiva, o adolescente, a geração X, o nerd etc.). Sobre essa base, cada um especifica seu público-alvo: os romances de Robbins atendem ao sujeito que tem atração por um pouco de violência, sexo cru e interesse mais ou menos limitado às brigas de poder no escritório, West fala aos que têm inquietações espirituais/psicológicas de alguma espécie, Uris, ao leitor que não tem paciência para clássicos, mas suporta longas narrativas mais ou menos épicas.
O que é imutável, em todos os casos, é o fato de não se pedir nenhum tipo de transporte por parte do leitor. O perfil psicológico, os hábitos sexuais, a moralidade, os costumes familiares, até a descrição física dos personagens que habitam o universo do best seller são exatamente iguais à imagem que seus leitores fazem de si mesmos e das pessoas que os cercam, não importa qual época histórica, classe social, nacionalidade, história de vida etc. esteja em questão.
As mulheres continuam lindas e desejáveis na meia-idade, mesmo depois de gerar cinco filhos; os homens, potentes, decididos e viris até os 70 anos. Entre os antagonistas, grassa a fraqueza, a vilania, a traição, a covardia, a feiúra, a perversão. Os conflitos, depois de tirada toda a maquiagem, quando é o caso, reduzem-se ao círculo familiar e, sobretudo, num movimento tão emblemático que dá preguiça de comentar, à relação entre pais e filhos do sexo masculino. Todo mundo fala "eu te amo" a toda hora, para seus cônjuges, pais, filhos e irmãos.
A indústria cultural estabeleceu uma equação na qual não pensar sempre se iguala a diversão, numa operação alegre e igualmente compartilhada por produtores, consumidores e até, ahn, críticos. "Fale o que eles querem ouvir, dê a eles as imagens que habitam suas fantasias, reiterem em cada aspecto do seu produto que o mundo e os homens são, sempre foram e sempre serão assim, para que eles se sintam confortáveis."
Funciona, é claro (é só ver as listas de mais vendidos, assistidos, alugados etc.), mas reconhecer sua eficácia não impede de classificar esse procedimento de autoritário. Autoritário, porque a única opção do leitor, neste caso, é a de receber a história e os personagens exatamente como foi programado pelo escritor. Assim, a satisfação, que parecia lá em cima um ato simples de gentileza, supõe subordinação. E subordinação não é exatamente minha idéia de diversão.
Com essa uniformização, o entretenimento pretendido fica obscurecido para o leitor que seja desviante dessa fôrma. Como se fala do igual para o semelhante, a dessemelhança prejudica o mergulho no que seria o propósito desse tipo de literatura: a ação, a distração de si mesmo por meio da movimentação alheia, em suma, a trama.
Em best sellers de gênero -espionagem, policial, gângster, thriller científico- a trama acaba por se impor, dependendo da habilidade do escritor em manipular os clichês. Nos anos 80 e 90, os autores de best seller desistiram da idéia de fazer o romance genérico (como Robbins e West) ou de cortejar alguns gêneros clássicos (como Uris). A segunda geração investe mais pesado nas tramas, importando gêneros consagrados pelo cinema (caso de John Grisham, que levou para os livros o thriller jurídico), criando histórias de apelo atual, quase jornalístico (como Michael Crichton fez com o tema do assédio sexual ou da clonagem) ou tomando de empréstimo subgêneros da literatura (Stephen King e Clive Barker, por exemplo, que atualizaram o romance gótico). Não que isso elimine o caráter autoritário desse tipo de literatura, mas disfarça um pouco melhor, por meio da ação mais veloz.
Os dinossauros do best seller, na tentativa de fazer um romance palatável, de fácil digestão, acabam por criar histórias que não são lá essas coisas. Veja só:
Luxúria, vingança e ambição - Harold Robbins, que dos três é o mais tosco, conta uma história enfadonha de disputa de poder numa fábrica de automóveis em "Os Devassos". Entre as reuniões de diretoria da empresa, convenções de vendas e viagens de negócios, todo mundo faz muito sexo, descrito com alguma crueza pornográfica, mas devidamente embalado em lições de moral e até de higiene (há uma passagem em que uma personagem se oferece para ser sodomizada e o seu parceiro ministra uma breve aula sobre os perigos de contaminação de tal prática. Detalhe: ela é do mal). Nem dá para dizer que é previsível, porque não há sequer o que prever. Tudo se oferece à primeira vista.
Drama, culpa e reparação - Morris West tem lá sua pretensão de investigar a alma humana. "Ponto de Fuga" trata de uma caçada humana: um homem procura outro, desaparecido em circunstâncias misteriosas. Trocas de identidade, disfarces, perturbação mental, adornados por paisagens de cartão postal e do "submundo das finanças internacional". Não falta sexo, é claro, desta vez amaciado por pitadas de romance fugaz. A tessitura revela-se rala e um tanto preguiçosa (a certa altura, o tal "submundo", antes tão perigoso, vira mero subtexto). Como acompanhamento, West oferece uma discurseira que de tão programática beira o "nonsense": "Por que o Criador elaborou um universo de unhas e dentes, cujas criaturas vivem devorando-se umas às outras? Por que as engrenagens do cosmo desengatam com tanta frequência? Por que gêmeos siameses de bebês acéfalos?". Uau!
Heroísmo, lealdade e paixão - Leon Uris consegue um pouco mais de liga em "Redenção", continuação de outro best seller, "Trindade". O pano de fundo épico-histórico -as lutas de independência da Irlanda em fins do século 19 e começo deste, passando pela Primeira Guerra- é tecido com muita pesquisa e algum domínio da técnica narrativa. Com traços de saga familiar -os dois heróis são tio e sobrinho-, alguns episódios até que seriam bem contados, não fosse a prolixidade e uma certa mão pesada para lidar com idas e vindas cronológicas. De novo, há sexo, agora em diversas histórias paralelas de paixões muito bem arrumadinhas, ora impossíveis, ora idealizadérrimas. Aqui, o problema maior é de excesso: a impressão é de que o livro tem pelo menos 300 páginas a mais, para durar bastante e oferecer a sensação de que o leitor passou por uma experiência, uh, densa.
A geração 90 do best seller aprendeu uma lição: escreve já pensando em Hollywood. Assim, suas histórias saem necessariamente mais enxutas, mais ágeis. Robbins, West e Uris voltam ao final dos anos 90 exatamente como saíram na década de 70: pesadões e monótonos, sem um pingo de senso de humor.

Texto Anterior: THOMAS PYNCHON; BOBBIO; DEGAS; LIVRARIA; REVISTA; FOTOGRAFIA; CONGRESSO; LANÇAMENTO
Próximo Texto: Os poderosos chefões do best seller
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.