São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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A América merece Danielle Steel

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Danielle Steel é a autora de mais de 20 "best sellers românticos", incluindo "Álbum de Família". Entre seus outros livros estão "A Paixão de uma Promessa", "A Promessa", "A Estação da Paixão", "Amar de Novo", "Amando e Amor", nenhum dos quais tive oportunidade de ler. Todos somados, já venderam mais de 50 milhões de exemplares e foram traduzidos em 18 idiomas.
Acabo de ler "Álbum de Família", um livro de alguns anos atrás, embora "ler", no caso, seja uma palavra tão inadequada quanto "escreveu", na seguinte frase: "Danielle Steel escreveu 'Álbum de Família"'. Na época em que o livro foi escrito, muitos democratas americanos se perguntavam: "Como é possível Ronald Reagan?". E talvez um crítico literário devesse se perguntar: "Como é possível Danielle Steel?". São questões diferentes, presumivelmente, mas talvez estejam também obscuramente interligadas.
Não quero, com isso, sugerir que um índice mais alto de alfabetização real teria tornado Steel ou Reagan menos populares. A leitura é um processo que exerce pouco efeito sobre a economia política contemporânea. E quanto às relações entre literatura e sociedade, acredito piamente que Oscar Wilde ainda seja um guia melhor, neste assunto, do que qualquer teórico literário marxista, passado ou moderno. O sublime Oscar sabia que, na literatura, um sanduíche de pepino tem mais substância do que um país.
O que une os fenômenos Reagan e Steel é que ela, como outras da mesma laia, é cultivada por milhões de pessoas que deveriam saber melhor o que estão fazendo. Mas ninguém discute o prazer dos outros, e depois de ler "Álbum de Família" tenho a convicção, também, de que foi produzido pelo mais genuíno sentimento. "Todo mau poema vem de um sentimento genuíno", observou Wilde, o que também é claramente verdade sobre os maus romances.
O "best seller romântico", como forma, enfatiza o domínio da possibilidade, em contraste com a probabilidade, ressaltada por seu irmão ciumento, o romance. A tradição de subliteratura romântica é muito antiga, tão antiga quanto a disseminação do ensino da leitura; e, a cada era, essa forma de escrita satisfaz desejos e necessidades populares. A democracia, na literatura como na política, está sempre sujeita ao aviltamento; mas restringir o acesso à leitura é uma idéia mais ou menos tão boa quanto seria restringir os limites do livre mercado.
E, contudo, a experiência de passar por este "Álbum de Família" é algo de lúgubre e exige uma certa bravura, que normalmente um crítico literário não é obrigado a exibir. Talvez a tradução, para essas 18 línguas, melhore um pouco o original; não há nada aqui, de qualquer modo, que se perca em tradução. A qualidade da prosa é difícil de acreditar. É tão ruim que praticamente se transforma num outro meio, como se a tela da TV tivesse sofrido uma transmutação, descarregando páginas, agora, em vez de imagens e som. "Danielle Steel", quem sabe, não é uma pessoa, mas alguma espécie de processador de palavras, ainda não refinado o bastante para nos dar sentenças com sentido gramatical.
O livro conta a história de Faye Price e Ward Thayer, e seus cinco filhos, num período de tempo que vai de 1943 até 40 anos depois e tem lugar, principalmente, em Hollywood e cercanias. Faye é linda e brilhante, uma atriz que virou grande diretora. Ward é bonito e não tão brilhante, um dono de estaleiro que virou grande produtor de cinema. Seus cinco filhos são variadamente lindos e/ou brilhantes e seguem os desígnios da sobredeterminação. Ao final do livro, o filho obtuso, jogador de futebol americano, o favorito do pai, foi bombardeado no Vietnã, enquanto o outro, homossexual e inteligente, está muito bem fazendo filmes. Das três meninas, a primeira tornou-se uma escritora séria, em Nova York; outra ganha um Oscar de melhor atriz e a terceira, depois de experiências terríveis com sexo e drogas, se ajusta, contente, com um advogado de Hollywood, 30 anos mais velho. Este sumário, embora correto, é um pouco mais coerente do que a trama; mas coerência não é exatamente uma virtude do livro.
Sua virtude, ou sedução, mundialmente sentida, com certeza, é que o livro é explicitamente um sonho americano, como Ronald Reagan também foi. Danielle Steel, seja ela uma pessoa, um computador ou a combinação dos dois (o "copyright" do livro está em nome de Benitreto Productions, Ltd.), não pode ser subestimada. Como o presidente daqueles anos, ela também é sincera e, como ele, conhece bem o seu público. A tradição romântica na literatura e na vida americanas acrescentou uma forma pragmática de esperança às fantasias européias do maravilhoso, o sentido de que o maravilhoso poderia realmente ser atingido por um indivíduo. Danielle Steel está, num extremo do espectro literário, como Thomas Pynchon no outro. Ela escreveu um "Gravity's Rainbow" para quem lê vendo televisão ao mesmo tempo. Nós, americanos, devemos ter feito por merecê-la, tanto quanto fizemos por merecer nossos políticos. Ela também é um espelho, no qual, antes sequer de poder pensar, reconhecemos o nosso pensamento.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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