São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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Corações solitários

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM LONDRES

Se há algo com que os amantes em geral concordam é que, se o amor brota de algum ponto no corpo, esse lugar definitivamente não é o cérebro.
Para algumas culturas ele vem do fígado, para outras, das entranhas, dos olhos, dos genitais ou do coração. De nenhuma jamais se soube para a qual ele viesse dos miolos. Sem dúvida, o amor é uma emoção muito cromática para ser gerida pela massa cinzenta. Se mal comparássemos o ser humano com um carro, o pulmão estaria para a potência, o coração para o acelerador e o cérebro para os freios e o sistema de segurança. E quem estiver preocupado com segurança em matéria de amor, é melhor pegar logo um triciclo ou ir a pé. Porque amor, como se sabe, só é bom quando causa vertigem.
Seria, portanto, possível refletir civilizada e profundamente sobre o amor? Por incrível que pareça, sim. Do mesmo modo como se pode cogitar sobre a dor: não que ela vá passar ou que nossa tolerância a ela vá aumentar, apenas que é possível pensar sobre os rigores da agonia enquanto o corpo estrebucha. Manuel Bandeira não dedicou os mais líricos versos à tuberculose que o corroía? Assim também as mais lúcidas observações sobre o amor vieram de criaturas transidas por penosas convulsões passionais. Gente como Dante, Petrarca, Rousseau, Stendhal, Goethe, Proust ou Oscar Wilde. Uma galeria e tanto não? E eu só nomeei alguns dos membros do vasto clube dos corações solitários.
Pois, senhoras e senhores, membros do clube, eis a pauta da próxima reunião: leitura obrigatória do "Ensaios de Amor" do sócio sr. Alain de Botton, seguida de discussão aberta em plenário. Com a inspiração do livro, os senhores sócios poderão experimentar se reflexões cerebrais sobre o amor podem ou não surtir calafrios na espinha, dilatação dos vasos, aquecimento do rosto, transpiração, tremores, arrepios e ondas de eletricidade pelo corpo. Será um teste ousado: investigar a dimensão erótica que liga a imaginação reflexiva, por meio do sistema nervoso, aos terminais sensíveis da pele. Os pontos serão contados pelo número, duração e intensidade dos suspiros.
No meu caso, pontuei alto. O livro é uma combinação harmoniosa de erudição, ironia, inteligência, sensibilidade, humor, simplicidade, atenção ao peso crucial dos detalhes prosaicos e uma textura literária de qualidade superior. A feitura do texto surpreende, organizada em capítulos subdivididos em tópicos numerados, no estilo dos textos de filosofia analítica, mas evocando sobretudo o "Fragmentos do Discurso Amoroso" de Barthes, pela afinidade temática.
Diferente do mestre francês porém, os "Ensaios" de De Botton constituem na verdade um romance, ao longo do qual, conforme os atos e o desempenho dos protagonistas, pelas sucessivas fases da relação, o autor vai dissecando impiedosamente a experiência amorosa, com a tesoura da análise, o bisturi da razão, expondo o estado progressivo de corrupção dos tecidos, que ele depois reconstitui com a agulha das comparações familiares e a linha do humor autocrítico.
A gama de referências culturais evocada para caracterizar situações é vasta a ponto de assustar: Aristóteles, La Rochefoucauld, Heidegger, taoísmo chinês, Camus, Wittgenstein ou Groucho Marx. Ademais, De Botton utiliza mecanismos de lógica formal, equações matemáticas ou análise combinatória para demonstrar seus teoremas. Mas não há motivo para susto, todo esse aparato é acionado para realçar a imponderabilidade dos fluxos afetivos e só acentua o tom irônico que atravessa o livro. Quando se pensa que a erudição vai fazer alguém franzir a testa, ela solta seu riso.
A mágica que permite manter esse malabarismo complicado entre o grave e o cômico, a tristeza e a esperança, o instinto e a razão, reside numa ambiguidade sutil da linguagem, mantendo as resoluções em suspenso, impedindo quaisquer categorias de se cristalizarem e tecendo um elegante discurso de impermanências.
Certamente, srs. sócios, o livro não os tornará melhores amantes nem vai mitigar suas dores. Mas os srs. aprenderão muito sobre si mesmos e seus parceiros, conhecerão melhor os limites das expectativas passionais, vão adquirir maior humildade diante dos mistérios insondáveis do amor e vão se divertir um bocado reconhecendo as próprias tolices. Sobretudo terão esse raro prazer de ler grande literatura. E de prazer ninguém entende tanto quanto os srs. Cordiais saudações e tenham juízo!

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