São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 1997 |
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CPI, empreiteiras e meia pizza
LUÍS NASSIF A divulgação do mapa de venda de títulos do estado de Pernambuco muda substancialmente o eixo das investigações conduzidas pela CPI dos Precatórios. E deve levar as investigações para águas muito mais profundas: o das empreiteiras do setor público e dos grandes esquemas de arrecadação de fundos eleitorais.Até então, a tese preferida (por ser mais cômoda) era a de que a operação foi articulada por um espertalhão de mercado, o Banco Vetor, que corrompeu alguns funcionários da Prefeitura de São Paulo, e se acumpliciou com dois ou três governadores estaduais e prefeitos. Essa tese é desmontada pelo mapa de vendas dos títulos de Pernambuco. Ele comprova que o Vetor ganhou R$ 8,2 milhões na comercialização dos títulos, mas o grosso do dinheiro, R$ 40,8 milhões, foi para a Corretora Split --a mesma que atuou no Pau Brasil, o esquema de arrecadação de recursos para o então candidato Paulo Maluf (cujos financiadores são as mesmas empreiteiras que foram pagas pela Prefeitura com recursos advindos do lançamento desses títulos). Até Pernambuco, apenas São Paulo conhecia esse tipo de operação, tendo-a estendido inclusive para sete prefeituras vizinhas. O Vetor só aparece quando as operações passam a ser realizadas fora do Estado de São Paulo. Como o Vetor poderia ser o mentor de um esquema que começa antes de ele entrar e prossegue, incólume, depois que ele entra? Juntando essas peças, é possível se chegar à seguinte hipótese de investigação, muito mais plausível: 1) A operação teria sido planejada em São Paulo, como maneira de arrecadar recursos para obras e para o financiamento de campanha eleitoral. Para viabilizar a operação, havia a necessidade de se criar um precedente no próprio Senado nacional (a permissão para incluir nos cálculos ações ajuizadas até a Constituição mas ainda não julgadas). O que foi feito através de uma interpretação torta da Constituição, pelo relator senador Gilberto Miranda. 2) Quem organizou a operação? Não se pode perder de vista que o setor com maior "tecnologia" de tratar com o Legislativo são as grandes empreiteiras --justamente as maiores beneficiadas pela operação, já que os recursos foram utilizados para pagamento por obras realizadas por elas na Prefeitura paulista. 3) Feita a emissão paulista, o mesmo esquema da Prefeitura decidiu levar a operação adiante. Num primeiro momento, a operação foi oferecida a sete cidades de São Paulo --de graça, segundo a versão dominante. Sem dispor de documentos, aposto um almoço de pizza como a comercialização desses papéis foi feita pelo mesmo esquema. 4) Para levar a operação para outros Estados, havia a necessidade de alguma instituição sem vinculações com a Prefeitura, que fizesse a venda e a corretagem da operação. Para isso é contratado o Banco Vetor, que já tinha experiência em operações de lançamentos de debêntures com algumas Estados. 5) Na primeira operação "terceirizada", em Pernambuco, o esquema ganha R$ 50,8 milhões --R$ 10 milhões de participação na comissão do Vetor e R$ 40,8 milhões que passam pelo "laranja" IBF e vão parar no caixa da Split. Desconte-se desse valor, os poucos mais de R$ 1 milhão que foram pagos a Wagner. 6) Em seguida, a operação é levada para Santa Catarina. Dos R$ 600 milhões de títulos negociados, o Vetor é autorizado a vender R$ 200 milhões e tirar seu lucro. Os R$ 400 milhões restantes são negociados pelo próprio Estado e adquiridos pela mesma estrutura de intermediários do esquema dos precatórios. Hipótese provável. Se essas informações estavam disponíveis, por que a CPI jamais considerou sequer essa linha de investigação? Desde o primeiro dia, vários senadores já trabalhavam com a hipótese Vetor --mesmo antes de as investigações terem caminhado e o Vetor ter sido ouvido. É possível que seja apenas uma questão tática, como sugere o relator Requião. Mas se a idéia é levantar indícios e provas, antes de pegar os peixes graúdos, como se explica que essa linha de investigação não tenha sido aprofundada nos interrogatórios? É mais provável que tenha havido acordo político prévio da CPI, para não deixar as investigações avançarem além de certos limites. Primeiro, para convencer a bancada do PPB a aprovar a CPI, permitindo ao senador Espiridão Amin fuzilar seu inimigo político, governador Paulo Affonso, sem expor seu correligionário Paulo Maluf. Mas, principalmente, para não se ter que ir ao cerne da questão política brasileira: esse enorme terreno movediço, não regulado, das relações entre empreiteiras, políticos, doleiros, algumas instituições de mercado e contraventores em geral. É todo um sistema econômico e político que foi montado em torno desses esquemas, contaminando o Congresso, o mercado financeiro e a própria vida nacional. Dinheiro da máfia do INSS, dos precatórios, das caixinhas políticas, das propinas pagas ao setor público, do tráfico, todos eles se encontram nos mesmos canais de distribuição. Aliás, seria covardia restringir esse episódio a Pau Brasil e Maluf. Esses esquemas perpassam todo o sistema político brasileiro. Clareada a cena, não haverá mais como adiar esse difícil acerto de contas com o passado. Não é tarefa para uma coluna, sequer para um jornal. Será o grande desafio da nacionalidade, a ser encarado por todos as pessoas empenhadas em construir uma nação moderna e limpa. Os próximos meses dirão se o Brasil já amadureceu o suficiente para encarar o grande desafio da modernidade. Ou se continuará aceitando passivamente a versão da meia pizza. Email: lnassif@uol.com.br Texto Anterior: Uma convergência estratégica? Próximo Texto: Investimento é recorde em país em desenvolvimento Índice |
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