São Paulo, terça-feira, 25 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sobre como entrevistar um prefeito negro

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

E agora, prefeito? O que o senhor tem achado dessa atmosfera de "E agora, José?". Ã-hã, é. Drummond, do poema "José", que diz assim: "E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu....". O senhor? É? Mas o seu caso se agrava ou se suaviza pelo fato de o senhor ser negro?
Ã? Hum-hum. É, o senhor disse, é verdade, que seria prefeito de todas as raças. Acontece que o senhor é negro. O senhor acha que vai receber qual dos dois tipos de tratamento: à la O.J. Simpson ou o outro, como o que deram àquele prefeito americano negro, Marion Barry, que se envolveu com drogas e foi condenado?
Não, ninguém está incriminando o senhor de antemão. Só que os fatos estão aí: a Prefeitura de São Paulo, quando o senhor era secretário de Finanças, fez lista irregular de dívidas judiciais, com suposta motivação dolosa, e valendo-se de interpretações elásticas da Constituição.
Como? Sim, claro, o senhor vai explicar tudo à CPI. Mas aqui eu só quero saber se o senhor, um negro, acha de bom-tom servir de escudo a um branco, Paulo Maluf?
Não são? Hum. Ninguém está dizendo que o senhor ou ele são culpados de antemão. Mas ele era seu superior na época. O Senado? Sei. E o Banco Central, que autorizaram as operações, é verdade. Mas ministros do Supremo já disseram que essas aprovações não retiram o caráter ilegal do procedimento da prefeitura paulista. Ah, é. Sei. Hum-hum. Ã-hã.
Mas o senhor acha que seu caso se agrava porque o senhor é negro? Ããã. Como eu já lhe disse, houve o caso do prefeito americano... Ã? Como foi? Teve jornal aqui que deu em manchete: "Prefeito negro americano condenado por uso de drogas", incluindo o adjetivo "negro". Como? Ah, sim.
Não estamos, não estamos nos Estados Unidos, claro. Mas, por isso mesmo, não é pior, prefeito? Aqui é todo mundo mulato, misturado. O senhor diria que alguém seria poupado aqui só por ser negro e rico? Foi assim com o O.J.
O senhor veja o caso de Pelé, a quem foi negado o título de cidadão de Brasília porque ele não quis reconhecer a filha, que é, aliás, a cara dele. Por falar em família, o senhor considera explicado o caso do aluguel do carro à sua esposa? Hein? Ah. Hum-hum. Ããã.
O senhor acha justo o Brasil tratar negros e brancos como iguais nessa hora? (Afinal, houve Collor e PC, brancos). Ou o senhor acha que exigem mais correção pública de negros, exatamente por serem negros? Por que o senhor está servindo de escudo para Maluf? O senhor acha que ele, branco, faria a mesma coisa pelo senhor, um negro? Hum.
O senhor não acha que dá entrevistas demais para dizer tão pouco? O senhor lembra o José do poema, prefeito: que "(...)Está sem discurso/(...)Sozinho no escuro(...)/Sem cavalo preto/que fuja a galope(...)".
O senhor é da opinião de que negro tem que dar exemplo, para reforçar a auto-estima das crianças negras? O senhor acha que vai servir de exemplo de auto-estima para as crianças negras? O senhor acha o quê, prefeito? Hein? Ã-hã. Ah, sim. Hum-hum. Ããã. Sei.

E-mail mfelinto@uol.com.br

Texto Anterior: "Pegaram-me à força quando eu era criança"
Próximo Texto: Neblina provoca quatro acidentes
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.