São Paulo, terça-feira, 25 de março de 1997
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Os limites éticos da guerra fiscal

FLÁVIO KOUTZII

Trava-se no Brasil uma guerra civil silenciosa, em que as batalhas são vencidas não pelos mais altivos, pelos que demonstram maior capacidade para avançar.
Ganha quem exibe maior vocação para transigir, conceder, recuar; quem tem mais talento para se render. Uma guerra na qual as vitórias, às vezes, têm custo social muito caro.
Basta uma grande empresa acenar com a possibilidade de se instalar no país e logo se torna objeto do desejo de Estados e governadores ansiosos pela idéia de progresso que ela carrega ou de olho nos dividendos eleitorais que uma eventual escolha pode proporcionar. Imediatamente, os pretendentes formam uma romaria de oferendas. É o campeonato do quem dá mais, financiado pelo dinheiro público.
A questão é: deve ou não haver limites éticos na guerra fiscal?
O Rio Grande do Sul saboreia uma dessas vitórias "gloriosas" na guerra fiscal. A recente decisão da General Motors de instalar uma montadora em solo gaúcho despertou a euforia geral, com razão.
Normalmente, a instalação de uma indústria do porte da GM realmente pode gerar desenvolvimento e prosperidade. Mas e as condições?
No início, guerra fiscal se limitava a reduções de alíquotas. Hoje, oferecer terrenos, isenções, facilidades de transporte, luz e água subsidiadas e infra-estrutura já fazem parte do bê-á-bá da disputa.
Mas, em pelo menos duas medidas, o governo gaúcho inova e exagera. Um cria um fundo para financiar a instalação da GM com recursos públicos obtidos com a privatização parcial de duas estatais, a Companhia Riograndense de Telecomunicações e a Companhia Estadual de Energia Elétrica.
Outro projeto estabelece que o governo vai usar recursos orçamentários para o capital de giro da montadora, que terá 22 anos para pagar esse "empréstimo".
Não é a GM que vai investir R$ 600 milhões no Estado. É o governo gaúcho que vai destinar cerca de R$ 500 milhões para financiar a GM. O que se falou antes -uma grande empresa trazendo prosperidade para o Estado- ganhou uma curiosa versão: é o Estado que vai garantir prosperidade à grande empresa, com recursos tirados de saúde, educação e segurança pública. Um custo que nem o próprio governo, muito menos a sociedade gaúcha, sabe ainda medir em troca de anunciados -mas não confirmados- 2.000 empregos.
Quem se mostra tão benevolente para com a General Motors é um Estado que a cada ano diminui sua participação no bolo do ICMS; que teve uma queda de 25% na produção agrícola; portanto, que está mais pobre.
Quem abre os braços e os cofres públicos para ajudar a maior empresa mundial do setor é um governo que assume um perfil de renúncia fiscal, de mau pagador, de descumpridor de leis salariais, de vendedor de patrimônio público sem critérios e de abandono dos serviços públicos básicos, e que tem uma resposta na ponta da língua para qualquer reivindicação da sociedade: não há dinheiro.
Há uma justificativa pragmática, que, perigosamente, ameaça se tornar senso comum: "Se não fizéssemos isso, se não déssemos facilidades, a montadora iria para outro lugar". Como se a vinda da GM para o Rio Grande, centro do Mercosul, fosse um favor e não fruto de uma estratégia industrial e mercadológica.
A idéia de que a relação de chantagem é irreversível começa a transitar facilmente. Outra ironia: quem faz o discurso dos incentivos ilimitados e justifica o uso do público para financiar o privado são os mesmos que vivem repetindo que o Estado deve sair da economia para prestar bom serviço na área social.
Que a GM venha e traga desenvolvimento. Mas permanece a questão: deve haver limites éticos na guerra fiscal? Deve. O governo federal, que deveria ser o regulador de uma política geral sobre os incentivos fiscais, coloca combustível na disputa de concessões ao fixar isenções para empresas que optarem pelo Norte e Nordeste.
Enquanto isso, milhares de pequenas e médias empresas, sem apoio, cerram suas portas a cada dia em todo o país, e os Estados brasileiros se afundam em dívidas, cada vez menos capazes de cumprir minimamente sua obrigação de garantir o bem-estar à população.

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