São Paulo, terça-feira, 25 de março de 1997
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"Eu, Collor, sei que vocês têm saudade de mim!"

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Escute aqui, minha filhota! Escute, você pensa o quê? Pensa que sabe tudo? Você não sabe de nada! Eu fui presidente e continuo eivado de um poder inefável como um "sonho de uma noite de verão" ou como as asas de borboletas de Ariel em "A Tempestade". Eu tenho muito poder sobre este povo, este Caliban troncho e descamisado que nunca vai me esquecer."
"Eu sou o espelho do país. Eu ensinei a este povo o avesso de minha pele, eu ensinei o outro lado do nada, o outro lado da roupa, eu invadi a burguesia e mostrei tudo de dentro para os miseráveis... Que vocês todos são. O povo nunca vai me esquecer, minha filhota, o povo nunca vai parar de me ver queimando como um mártir, um mártir, sim, eu sou um mártir sendo devorado (mão fechada bate na mesa) por leões, tigres, leopardos."
"Pode botar esse microfone na minha pobre cara de ex-presidente, me expor ao Brasil todo pela TV, vai... Queime-me com as luzes dessa câmera branca, desse "flash" terrível, você não percebe que eu sou um sucesso?" (Ergue-se com perfil de águia.) "Eu sou uma estrela, eu sou o mistério do fracasso do branco, rico, bonito e burguês!"
"Eu ofereci meu corpo para este país de pretos ou quase pretos. Você não percebe, baby, que o Brasil precisa do meu talento para o erro?" (Murro na mesa, riso metálico, ruído de bips de alarme.) "Ahh...Você... Minha filhinha, minha filhotinha, segurando esse microfone do outro lado do Bem, você não sabe o que é a solidão de ser apedrejado na entrada do hospital onde sua mãe está dura feito uma múmia, uma múmia que ficaria dois anos me acusando em seu silêncio, entre tubos e soros e papagaios e..."
"Não sentir nada... E descobrir debaixo de pedras e xingamentos que a vaia te dá um doce prazer trêmulo, um luxo sexual... Você... Você é linda, filhotinhazinha, você tem os traços límpidos, gregos de Palas... Que coisa erótica esta nossa relação aqui, não é? O povo inteiro vendo você me humilhar com suas perguntas corajosas..."
"Como o povo se excita ao ver um homem jovem e bonito, desgraçado como eu... Que coisa erótica para este povo pobre... Isso, olhem-me bem, descamisados, eu sou o fracasso da burguesia, Sonia! E eu amo... isso... Como amei quando pedi que saíssem nas ruas, com bandeiras brasileiras, e todos me derrubaram..." (Ruídos em off de multidões.)
"Que cena linda seria se nós nos amássemos, filhota, se, subitamente, nos apaixonássemos aqui diante da TV?" (A repórter tem funda tristeza e lembra do primeiro namorado.) (Collor aponta para os olhos de 70 milhões de espectadores.)
"Vocês me chamam de ladrão, canalha, mas vocês pressentem que eu sou mais que isso! Vocês não entendem, mas eu moro numa região não linear onde o visível é uma camuflagem. Eu desvendei um crime, cometendo-o. Eu menti, propositadamente mal, para ser apanhado. E, de tempos em tempos, vocês precisam me rever, para se reassegurar de vossa pretensa pureza... "
"Sonia, deste lado do microfone só existe a beleza de seus olhos cinzentos..." (Aproxima mão trêmula do cabelo da repórter, que recua. Ele sorri. Bips de alarme.) "Eu mostrei a vocês o Brasil no meu corpo. Eu virei um papel de mosca com tudo grudado em mim: PC, rosanes, fantasmas, rosinetes, barrigas dos Maltas, arreglos uruguaios, nova visão de cinismo, o fim do populismo descamisado, a vitória do mau gosto, a essência do crime colonial, jatinhos, morcegos, surubas fisiológicas, a solidão infinita do meu martírio, ahh ahh!" (Novos bips agudos.)
"Como eu acertei, errando! O povo me entende. Eu sou popular; fui eleito por um auxiliar de enfermagem e fui derrubado por um motorista. Eu fui o orgasmo, a lua-de-mel entre a modernidade e o melaço grosso da colônia de Alagoas, eu fiz a ponte podre entre o público e o privado! Por mim, vocês tiveram o primeiro herói trágico; não um Tiradentes esquartejado, nem Getúlio suicidado..."
"Eu fui um Napoleão que se descoroou, eu criei minha própria crise, como se eu fosse um outro. Eu botei em cena a tragédia greco-alagoana de nossas vidas... Ohh... Os lábios de coral e os dentes de pérola e as coxas perfeitas de Thereza Collor, essa deusa do latifúndio que eu nunca vos direi se beijei!... " (Milhões de televisores se acendem. Crescem índices.)
"E a dor-de-corno de meu irmão movendo a história, me acusando, e eu crescendo como uma pedra dentro de seu crânio, e o sangue dos bodes pretos degolados por Rosane no Planalto criando o câncer em sua cabeça, e meu pai Arnon errando um mesmo tiro há 30 anos, um mesmo tiro para sempre e sempre matando a pessoa errada, e minha mãe-pátria amada, imóvel para sempre no hospital sob a bandeira do Brasil!"
"Tudo isso quem vos deu, meu povo? Quem?" (Seus lábios não sincronizam mais com a fala, deixando ver que ele são dois: um que sofre e o outro que não.) "Eu fiz uma revolução democrática, quando confisquei vosso dinheiro, igualando Antonio Ermirio e você, pé rapado de cinco cruzados! Eu fiz a sociedade civil acordar! Como ficou tudo triste depois que eu me fui... "
"A imprensa sem assunto, os crimes sem autores, como esses "precatórios" insossos e tecnizados, como um filme sem enredo, sem heróis. Eu planejei minuciosamente cada um dos meus erros. Eu desmoralizei minha própria classe social, matando-a por dentro."
"E depois, quem continuou errando para vos instruir? Quem comprou casa em Miami com bica de ouro? Quem se vestiu de havaiana no dia da morte de PC? Eu sou o retrato louco e frágil do Brasil moderno e neoliberal e, se vocês bobearem, cairão como eu caí!"
"Eu não sou uma caricatura; eu sou uma alegoria! Vocês nunca foram os mesmos depois de mim!" (Grita, assim como uma sirene.) "Olha... Minha filhota, se nós nos amássemos..." (Gemidos metálicos, lágrimas pesadas rolam de seu rosto que se paralisa em arrancos, boca se move e não sai som; só ruídos de engrenagens. Boca se abre, lenta.) "Olha... minha... filhota... olha... minha... filhot... minha... ahhh!"
(Rosto imóvel, boca aberta, olhos arregalados. Lágrimas pingam como gotas de mercúrio. Cabeça cai para o lado.) Corta para Lilian Witte Fibe, que também chora: "Boa noite".

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