São Paulo, quarta-feira, 26 de março de 1997
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Traficar cocaína com balas Juquinha é sacrilégio

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Leio nos jornais que o esquema máfia-PC traficou cocaína em contêineres de bala Juquinha. Balas Juquinha! Isso é um sacrilégio.
Quando criança, fui grande consumidor das balas Juquinha. Eram brancas, grudentas, e a embalagem ostentava a mais profunda inocência infantil. Havia o desenho de um menino, com cabelos muito bem penteados, arranjados num topete. Você desembrulhava a bala, e ela era branca, quadrada, como um travesseiro.
Mas bastava você morder a bala Juquinha e acontecia um milagre. Aquele travesseirinho branco e compacto se transformava numa festa de cores invisíveis. O tutti-frutti artificial se desdobrava na língua, multiplicava-se em sensações jamais vistas, numa eclosão de puxa-puxas brancos por fora, coloridos por dentro.
Havia algo de suspeito, portanto, na aura de inocência que revestia esses prazeres. A embalagem mostrava um garoto limpo, comportado, como que ignorante da avidez infantil, do vício, do prazer de quem consumia aquele caramelo.
Talvez inconscientemente, os traficantes fizeram uma espécie de obra-de-arte vanguardista usando as balas como fachada da operação. O disfarce não podia ser mais revelador.
Projeta-se com isso o grande medo das donas-de-casa, a associação entre balinhas e drogas. E, se as balas Juquinha eram a caricatura da infância, eis aí o lugar ideal onde se depositarão o vício, a dependência, o erro, a perversão.
Poucos dias antes, noticiou-se que potes de creme de beleza, vendidos numa feira do programa Comunidade Solidária, estavam recheados de maconha. Novo escândalo: as boas intenções governamentais se tingiam de vício...
Mudo bruscamente de cena. Estou vendo a entrevista de Collor no "Jornal Nacional". Ele recrimina, deblatera, exalta-se. Tudo, como sempre em Collor, tem um ar de balas Juquinha. O topete, o ar bem-comportado, a certeza publicitária e o esforço quase ridículo em se fazer acreditar pela opinião pública.
Só que, junto com a "indignação" de Collor, havia um contraponto irônico. Enquanto ele deblaterava "sinceramente", mostrava-se o fundo, a parede contra a qual se destacava seu rosto em fúria. Era uma espécie de painel, de tapeçaria com motivos baianos.
Cores vivas, geometrias banais, bananismos, candomblices, eram mostrados no painel ao fundo, enquanto Collor se destacava, supostamente indignado, na tela da Globo, reclamando das injustiças de que seria vítima.
Pensei, involuntariamente: "Isso é Brasil". Ou seja, a indignação de superfície parece brincar com a festa tropical do fundo, a pretensa seriedade de Collor contrastava com o carnaval decorativo que se via atrás dele.
A cena era surrealista. Assim como o uso de balas Juquinha para o tráfico de drogas: proeza irônica, vanguardismo involuntário.
Até mesmo um vanguardista como Duchamp pensaria um pouco antes de usar balas infantis como fachada para o tráfico. Vivemos o "ready-made" na realidade policial. O choque, o jogo da coisa fora de seu contexto surgem aqui como fato a ser investigado, não como ficção, como obra original.
Nada mais fácil do que concluir: Este país é uma piada... Não é um país sério... O surrealismo é nosso. Ao contrário, sempre desconfiei da versão de que "O Brasil não é um país sério", suposta frase de De Gaulle que Chirac, enfaticamente, encarregou-se de desmentir em sua recente viagem ao Brasil.
Claro que a seriedade brasileira nunca foi assunto de debate entre os franceses. Aqui é que nos preocupamos com o que De Gaulle teria dito ou não, aqui é que cobramos de Chirac uma posição a respeito. Talvez exista, nessa insistência com relação ao tema, o desejo de que, no fundo, o Brasil não seja mesmo um país sério. Quando apostamos no fracasso da CPI, será que não estamos torcendo secretamente pela pizza?
Mas um país que votou, com ímpeto inédito na história, pelo impeachment de um presidente talvez seja mais sério do que se julga. Gostamos de pensar que tudo o que se passa aqui é pura brincadeira. Não é verdade.
A ironia modernista, neodadaísta, das balas Juquinha servindo de fachada para o tráfico, a inocência surreal de Collor atrás de um cenário debochado e tropicalista são como piadas involuntárias, brasilidades desastradas, opondo-se ao que se espera do país. Pouco a pouco, caminhamos rumo a uma modernidade mais exigente, menos engraçada, menos farsesca, menos oswaldiana.
É como pura reação ideológica que surge, hoje em dia, todo um modismo em torno do "caráter nacional brasileiro". Reedita-se Paulo Prado; Darcy Ribeiro é objeto de canonização. A obra de Gilberto Freyre nunca foi tão cultuada.
Todas essas imagens do país são um pouco como as balas Juquinha de minha infância. Uma aparência inocente no rótulo, branca depois que se desembrulha, miscigenada e artificial no paladar, satisfatória sem matar a fome, vagamente perversa em sua inocência infantilóide.
Mesmo a crítica, no Brasil, sempre foi uma espécie de cumplicidade: Isto é o país... O absurdo é nosso... Balas Juquinha e buchada de bode, PC Farias e Wagner Ramos, viva o Brasil...
Trata-se apenas de um clichê ideológico. Mesmo que não termine em pizza, haverá quem diga que terminou em pizza. Pensamento crítico ou "wishful thinking"? Vontade de que termine ou de que não termine?
Difícil saber. Só sei que estou cansado da história de que o Brasil não é sério, de que tudo termina em pizza. Se, na história brasileira, a conciliação é a regra, e os conflitos de poder nunca chegaram às últimas consequências, todo o discurso em torno da pizza, do caráter nacional, do surrealismo etc. parece por vezes mais um sintoma daquilo que se critica, mais do que uma denúncia radical do que acontece.
O retorno às velhas interpretações ensaísticas do Brasil, no gênero Paulo Prado, talvez seja entretanto um sinal de nostalgia. Reflete, quem sabe, a percepção de que nosso velho e bom Brasil já seja mesmo coisa do passado. Ainda rimos de Collor com a decoração baiana ao fundo; partilhamos, ao mesmo tempo, da perversão ideológica que gostamos de denunciar. É, ainda, tirar prazer de nossa inocência tropical. Ela nunca existiu.

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