São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Ciência e filosofia

ROBERTO CAMPOS

Ataques não-conformistas ao conhecimento científico não são novidade, desde que as ciências exatas e o método experimental se estabeleceram, após Newton, como o paradigma dominante, ocupando o topo da hierarquia do pensamento. Alguns desses ataques correram por conta de dogmatismos políticos, que atingiram nível grotesco com o racismo nazista e a violência stalinista contra a física "burguesa", a cibernética "judaica" e a genética "mendeliana". Entretanto, a oposição principal partia das posições dogmáticas e religiosas. O catolicismo foi obscurantista até a segunda metade do século 17. A principal vítima foi Galileu, condenado pela ousadia astronômica de fazer a terra girar em torno do sol. Como Brecht tão bem apontou, no entanto, a física de Galileu fazia melhores canhões e melhores navios -e quem ganha as batalhas e o comércio ganha também a escolha da verdade mais conveniente. Essencialmente, a visão religiosa procurava isolar um espaço para o sobrenatural, o transcendente, não submetido à disciplina repetitiva das ciências naturais. Os recuos têm sido lentos e penosos, e agora, bem mais de um século depois da "Origem das Espécies", de Darwin, parece que o próprio papa se curvou a algumas evidências difíceis de rebater, ao dizer, recentemente, que o evolucionismo é uma tese respeitável.
Muitos espíritos esclarecidos tomam a atitude de que de ciência e religião "non est disputandi". Mas nos Estados Unidos começaram, nos anos 80, as "guerras da cultura"; na atual década, chegou a vez das "guerras da ciência"; e o festejado sociólogo Samuel Hungtington fala do conflito das civilizações como o "Grande Drama" do futuro. Os americanos acham que esse clima de conflito se deve a uma reação das pessoas num quotidiano ameaçado pelo "superdesenvolvimento nuclear, biogênico e químico", desembocando num "tecnoceticismo" que vai dos alimentos processados até as perspectivas de um futuro manipulado pela engenharia genética.
Surgem movimentos "desconstrucionistas" de esquerda, ao estilo de Derrida, Lacan, Lyotard e Kristeva, que, não gostando do mundo tal qual é, pretendem criar outro na marra, numa espécie de voluntarismo delirante. Isso ocorre também em alguns arrabaldes do pensamento americano e parece ter especial atração para certos movimentos ideologizantes de minorias, entre os quais gays, feministas, alguns grupos negros e os inefáveis "verdes".
Pôr em relevo ridículos alheios é um exercício fácil, a que muita gente se deixa levar com prazer. Menos fácil é procurar entender. Obviamente, a noção de que a ciência e o conhecimento tecnológico são meramente formas de "ideologia" é levar o irracionalismo muito além da ponta mais extrema do galho. E nenhum desses "críticos da ciência", quando pegam Aids, deixam de reclamar os mais recentes "coktails" terapêuticos que mal estão saindo do laboratório. Nem tentam movimentar os seus carros à base de um decidido exercício de vontade. Tem de ser mesmo nas leis da física. Isto dito, cabe perguntar: que é que leva as pessoas a essas atitudes? E aonde querem chegar?
Não é preciso um espírito de observação muito atilado para reconhecer que há, na nossa cultura, um enorme vazio no espaço em que estavam, desde que o primeiro homem se pôs a pensar os valores, a religião e o sobrenatural. Até o advento do mundo contemporâneo, as sociedades ofereciam à maioria das pessoas uma espécie de matriz, em que podiam abrigar-se e onde encontravam sistemas de referências e idéias e explicações sobre o universo. Alguns espíritos filosóficos afirmam que podem viver olhando de frente o nada existencial -o fim do sentido de tudo, a morte. Pode ser. Mas não é o caso da imensa maioria, que se sente perplexa e perdida diante do oco para o qual a vida parece caminhar.
Desde o começo do século passado, quando o industrialismo começou a dominar o quotidiano, uma dicotomia esquizofrenizante começou a dividir nossa civilização. A ciência e a técnica permitiam sempre mais um avanço incremental. Era natural então que se extrapolasse do "ir caminhando" para a postulação do "fim do caminho", abrindo-se todo o universo ao nosso conhecimento e domínio. Mas a verdade é que os nossos poderes não chegam a tanto. Vamos conhecendo sempre um pouco mais e, às vezes, damos saltos de uma plataforma mais estreita para outra mais larga. Isso aconteceu com a física newtoniana, a evolução das espécies, a genética mendeliana, a relatividade, a física quântica. Alguns até se aventuram a falar no "fim da ciência" -o que, entenda-se, não quer dizer o fim do conhecimento científico, mas sim a suposição de que os grandes limites deste já estão alcançados, e o que resta é ir tapando os buracos. Assim já pensavam, no fim do século passado, os positivistas de Augusto Conte. Hoje, isso pode ser um bom tema para noitadas universitárias, mas é algo pretensioso.
A seu modo meio enviesado, o pessoal das "guerras" da cultura e da ciência toca, no entanto, na angústia de uma civilização em que as pessoas sabem cada vez mais fazer coisas, mas se sentem o pé num mar angustiante. Não tenho grandes respostas a oferecer -se as tivesse, acho que estaria ganhando rios de dinheiro no circuito internacional das conferências, ao invés de labutar no ingrato ramerrão da nossa "Nova Era" política. Nem mesmo sei se a idade traz mais cansaço do que sabedoria.
Mas acho que talvez devamos prestar mais atenção à rarefação da condição humana no meio da superfetação do que os economistas pedantemente chamam de "bens e serviços". Soluções dogmáticas podem acabar em fogueiras da inquisição, "paredóns" ou tiros na nuca. A ciência, suplício de Tântalo, não sacia no meio da abundância que expõe. Metade dela, dizia Whitehead, é fazer as perguntas corretas. Só a outra metade é fornecer respostas duradouras.

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