São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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A palavra democrática

RENATO JANINE RIBEIRO
RENATO JANINE RIBEIRO

Tornou-se lugar-comum nestes últimos anos (desde que a derrota fascista rodeou a palavra democracia de um coro de elogios, pondo fim ao desdém que muitos lhe votavam até a Segunda Guerra Mundial) dizer que há democracia quando cessa o uso da violência, assim entendida essencialmente a força física. Dessa forma, atribui-se à palavra um forte poder: o de fazer cessar o mundo animal e introduzir, ou mesmo instituir, o mundo propriamente humano. Mais que isso: um mundo marcado, em seu cerne, pela igualdade.
O principal, nesta concepção, é que a palavra permite aos distintos atores trocarem de papel ou de lugar. Se nos pautamos pela força física, o descompasso entre A e B é radical. Mas, desde que a palavra determina o encontro entre eles, todo um mundo humano -isto é, não bestial- se viabiliza: o do diálogo, da igualdade, do respeito ao outro, das razões que se medem e se trocam.
Insistamos nisto. A força física estabelece entre os homens um poder que, não tendo o consentimento dos dominados, carece de legitimidade e, portanto, de estabilidade. Já Hobbes notava, no início do capítulo 13 do "Leviatã", que o mais forte, no estado de natureza, pode ser vencido pelo mais fraco, se astuto ou coligado com outros homens. Mais tarde, Rousseau dirá, ao tratar em "O Contrato Social" do "pretenso direito do mais forte", que de nada vale um direito que muda quando a força muda -que, portanto, faz que a palavra "direito" nada acrescente ao fato bruto da força. Daí que, para os humanos, seja decisivo superar o mundo da força.
A linguagem, nessa concepção, é a grande característica do ser humano, constituindo sua humanidade. Geralmente, é pensada como um artifício primordial, que recorta o homem da natureza, do mundo do que está dado, dos fatos. Talvez até do "fatum" ou destino: com ela se constrói a liberdade do homem, um ser sem programação prévia acabada.
Além disso, a linguagem forja a igualdade do homem. O fato de haver interlocução entre dois seres humanos, de eles se constituírem mutuamente como partes num diálogo, determina que, pelo menos formalmente -e aqui a forma é decisiva-, eles se realizem como iguais.
Por fim, mais e mais se consolida a convicção, pelo menos implícita, entre os que discutem teoria política, de que só a democracia realiza adequadamente a política. Este pressuposto se evidencia quando se nota que boa parte dos discursos sobre a política, hoje, a definem por traços que se referem à vida democrática. Insiste-se em que a política está na substituição da força pela palavra, no primado da linguagem, no diálogo, em suma, nos traços que constituem a nacionalidade, a liberdade, a igualdade dos seres humanos.
Esta é, em síntese, uma representação corrente, e mesmo dominante, da coisa política. Mas, se as coisas não forem tão simples?
O problema é que essa concepção -que, em linhas gerais, pode ser correta (é a que Jean-Pierre Vernant indica em seu "As Origens do Pensamento Grego")- supõe que a palavra é limpa demais, que nela circula um sentido essencial, despido de conotações, de densidades. Mas nada, no estudo da linguagem, confirma essa convicção. Ao contrário, o que as mais diversas teorias sobre a linguagem, linguísticas ou não, apontam é que ela se carrega de conotações e nada é sem estas.
Isso é o que chamaremos de densidade e de "sujeira" da linguagem. Por densidade, pensamos basicamente na carga poética. Esta não aparece apenas nos versos ou sequer na literatura, naquilo que os alemães chamam de "Dichtung" e que designa a criação literária: mostra-se já na fala cotidiana, toda vez que a linguagem se carrega de funções menos diretamente utilitárias (como mostrou Jakobson em seu célebre artigo "Linguística e Poética").
Na palavra, a denotação é importante, mas nem por isso é o centro dos discursos e, sobretudo, daqueles discursos em que o destinatário se mostra relevante. A conotação é tão importante quanto a denotação. Assim, não dá para concordar que a circulação das palavras confirme uma suposta produção da linguagem em uma relação inocente com seus referentes ou num nexo inocente com seus receptores.
Já por "sujeira" -a palavra, sem dúvida, é excessiva- entendemos não o que se celebra com o nome de poesia, mas o que se denigre como ideologia. O elemento de manipulação do outro é bastante frequente na linguagem. Percebe-se melhor no discurso propriamente político, mas nas últimas décadas se apontou sua presença em inúmeros discursos de aparência inocente -desde as "Mitologias", de Roland Barthes, sem esquecer "Para Ler o Pato Donald", de Armando Mattelart, e outros. Na publicidade, na religião, no direito e em várias das ciências sociais aplicadas se descortinou, assim, um discurso ideológico subjacente e inconfesso.
Mas não pensamos, com isso, retomar a crítica marxista à ideologia burguesa -até porque poderíamos mostrar como ela também é ideológica. O fato é que, mesmo sem a intenção explícita de manipular o outro (e a ausência dessa intenção explícita é o traço essencial da ideologia, distinguindo-a da mentira, já que na construção da ideologia é decisivo que também o construtor esteja tomado pelas convicções que deseja incutir nos outros) (1), ocorre, socialmente, essa manipulação.
Cabe, finalmente, falar dos casos em que há uma manipulação deliberada do destinatário. São os casos da sedução. Na sua representação clássica, com d. Juan e, sobretudo, Casanova, o sedutor é uma figura que, deliberadamente, fornece de si mesmo duplos que desviem da boa rota a pessoa (geralmente, uma mulher) a quem intenta conquistar. São casos de investimento consciente do poder.
A sedução é a realização suprema da retórica. Esta última, estudando as paixões humanas, pergunta como o discurso deve se configurar para melhor manejar o seu destinatário, entendido, antes de mais nada, como um ser de afetos, de paixões. E é na sedução que esse jogo extrapola, decididamente, as palavras, para meter-se no "clima", no entorno, e para conquistar, o mais das vezes, uma mulher.
Ora, a mulher é metáfora, em quase toda a história ocidental (e talvez oriental), da fragilidade humana. No direito romano, retomado pelos medievais, dizia-se que ela era "menor perpétua", isto é, uma criança que jamais cresceria: o que permite dizer que todos somos (ou fomos) mulheres, enquanto crianças, assim como a multidão é feminina quando se deixa possuir pelo líder-macho, pelo líder-máximo, Hitler, Mussolini.
Estes casos mostram como a linguagem dificilmente convém ao modelo de uma troca de idéias e de vontades límpidas que fundaria a interlocução ou o diálogo democrático ou político. O que é preciso discutir é, portanto, esta palavra cuja troca funda as relações democráticas ou políticas ou, mesmo, caracteristicamente humanas (entendendo que o homem é mesmo homem na medida em que se mostra capaz de discutir e construir sua própria socialidade) (2).
Não cabe contestar por completo as teses que expusemos e criticamos. Há, pelo menos, alguma legitimidade na tese de que a política e a democracia estejam vinculadas à destituição da força. Mas é preciso discutir o horizonte dentro do qual elas se colocam, entre o ideal de uma denotação e as possibilidades/realidades da conotação.
Aliás, a própria idéia de substituir a força bruta pela palavra já se mostra pouco atual. A ameaça à liberdade, à igualdade, à humanidade mesma está cada vez menos na força física. Essa, hoje, é pouco mais que um resíduo folclórico, com o qual se lida nos cantos perdidos da sociedade. A força que realmente silencia o dissidente é hoje a econômica, e a democracia não é mais, em sua essência, aquele conjunto de relações que suprimem a força bruta: é aquele que abre a caixa-preta do poder econômico, que, pelo menos, limita sua desmedida.
Por isso, é primordial debater o princípio mesmo segundo o qual a palavra sustenta a democracia: que palavra? Qual modelo de palavra estará presente nessa discussão? É possível haver uma palavra democrática que seja, ao mesmo tempo, densa (prenhe, por exemplo, de poesia)? É possível ser democrática uma palavra que seja, ao mesmo tempo, suja (carregada, por exemplo, de manipulação ideológica)? E, evidentemente, as fronteiras aqui são lábeis, de modo que, entre o denso e o sujo, as passagens podem ser múltiplas.
Na verdade, é um equívoco constituir como um ideal o diálogo limpo, sem perturbação ou ruído. Ele pode até sê-lo: um ideal de trocas entre os humanos, sem manipulação, sem engano, numa sociedade aberta e transparente. Boa parte das utopias históricas, desde a de Morus, assim se propõe a eliminar do social tudo o que seja mentira, ilusão, manipulação. O título da célebre obra de Starobinski sobre Rousseau, "A Transparência e o Obstáculo", viria a calhar para esse propósito.
Por aí fica evidente o contraste entre a transparência do diálogo democrático, respeitoso do outro, e a manipulação presente no discurso a que chamamos ideológico. Mas a dimensão do ideal não se esgota nessa primeira possibilidade. Se nos contentássemos com ela, teríamos um modelo de socialidade ideal, marcado pela exclusão do ruído, do diferente -daquilo cuja defesa tem marcado, desde vários anos, contra o marxismo e sobretudo contra seu herdeiro, o socialismo real, o pensamento de inúmeros autores que fazem uma releitura positiva da tradição democrática e mesmo liberal do Ocidente (3).
É isso, enfim, o que exige acrescentar, como ideal, a palavra a que chamamos densa. A diferença decisiva entre as utopias da necessidade, ou austeras, e as utopias mais propriamente poéticas é a atenção que estas últimas prestam ao caráter conotado da linguagem.
Longe de querer, na linha da condenação ocidental à retórica que inaugura a modernidade (e tem seus pontos iniciais e altos na crítica de Descartes aos jesuítas e de Hobbes aos escolásticos), que o discurso seja eficaz à medida de sua limpidez e que por isso deva repelir o que excede a denotação, o que desejamos é -apostando justamente no que parecia ser desvio, falha ou excesso- instituir sentidos enriquecidos. A riqueza é essencial à democracia, mas a riqueza essencial, isto é, a riqueza de sentidos.
E é por isso que uma palavra democrática densa, que retome o poético, não pode se debater só entre especialistas. Discutir a democracia envolve várias profissões e, em especial, aquelas que trabalham a densidade da linguagem. Contra Platão, que expulsava os poetas da "pólis", entendemos que só pode haver política se houver, nela, o toque poético.
Notas:
1. Este é o ponto que o leigo tem maior dificuldade em entender na teoria (marxista ou não) da ideologia. Parece quase inevitável tomar-se a ideologia por uma manipulação deliberada, a exemplo daquilo que a propaganda anti-semita constituiu em torno da falsificação conhecida como "Os Protocolos dos Sábios do Sião": um grupo de proeminentes judeus que teriam tramado tomar o mundo.
Devemos analisar por que uma visão conspirativa do social atrai mais que a visão seca que o marxismo propõe, na qual a construção da ideologia supõe que esta última também afete, em sua (in)consciência, seus próprios construtores. Não se trata, apenas, da banalidade segundo a qual uma crença será tanto mais forte quanto mais creiam nela seus próprios difusores, mas de entender que o processo social gera não só consciências diferentemente matizadas como, sobretudo, diversos matizes de inconsciência.
2. Podemos chamar esta de uma concepção grega revista. É grega a convicção de uma superioridade da vida na "pólis" sobre a vida apenas doméstica ou, pior ainda, servil, bem como a idéia de uma primazia da política. Se o grego (ou seja, quem fala a língua grega) é superior aos bárbaros, é também porque só ele está apto -naturalmente- para a vida em sociedade, enquanto os demais apenas conseguem esse tipo de vida mediante o emprego da força pelo soberano, que é, portanto, um déspota (como a região desses déspotas é o Oriente, temos aqui as remotas origens daquela personagem que depois da queda de Constantinopla receberá o nome de "déspota oriental"). Retoma-se aqui a idéia de uma primazia do político, já que é nele que ocorre a reflexão, a volta do homem sobre suas condições de vida a fim de decidi-las.
Mas a diferença em face dos gregos está em recusarmos o natural que caracterizava, entre eles, a disposição do homem livre para a vida política. Esta é concebida, sem que isso diminua sua dignidade, como um construto. Longe de ser o coroamento de uma natureza humana, a vida política é uma construção e mesmo a condição para o homem humanizar-se.
3. Poderíamos citar Hannah Arendt, Claude Lefort e, no Brasil, a obra pioneira -pioneira no meio dos marxistas- de Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia como valor universal.

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