São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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A peste da linguagem

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A gente corta muito a palavra porque a palavra não tem significado, ela não serve pra nada." Isto disse um surfista a uma repórter numa praia brasileira. De outro lado, Italo Calvino escreve, no capítulo dedicado à exatidão, em "Seis Propostas para o Próximo Milênio" (Companhia das Letras): "Às vezes tenho a impressão de que uma epidemia pestilencial golpeou a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, o uso da palavra. Uma peste da linguagem, que se manifesta como perda de força cognitiva e de imediaticidade, como automatismo que tende a nivelar a expressão pelas fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, que tende a diluir os significados, desbastar as pontas expressivas, apagar toda centelha que salte do encontro das palavras com as novas circunstâncias".
Lidas em sobreposição, estas duas declarações -a do surfista, tido como praticante exemplar da linguagem semanticamente tatibitate, e aquela de um dos expoentes da literatura contemporânea- parecem convergir para a definição de um quadro caótico instalado no processo "de comunicação". Um quadro em que quase ninguém consegue expressar o que pensa e entender o que lhe é passado. O clima fica ainda mais aflitivo se, continuando a ler Calvino, descobre-se que não apenas a linguagem verbal parece atingida por essa peste: também as imagens -modo de expressão que uma preguiça intelectual e algum modismo costumam caracterizar como típico desta época- surgem, para o autor italiano, como privadas da necessidade interna que deveria caracterizá-las e conferir-lhes uma verdadeira forma e um verdadeiro conteúdo, impondo-as à atenção e conferindo-lhes o leque gratificante de significados possíveis.
Quando se pensa na catadupa de imagens de tigres correndo em câmera lenta pelas telas de TV e, agora, pelos painéis eletrônicos das ruas; na repetição infinita de imagens de baleias "assassinas" saindo das águas e nelas mergulhando em seguida (também em câmera lenta), ou na multidão de mulheres loiras que balançam seus cabelos de um lado para outro (ainda em câmera lenta), difícil não dar razão a Calvino. Talvez se discorde dele apenas quando diz que essas imagens impotentes provocam estranheza e um certo incômodo: em mim provocam irritação e profundo desconforto.
Esse quadro de sintomas de uma comunicação tão saturada quanto abortada agrava-se quando se pensa num livro de outro autor italiano (mas esta não será uma simples coincidência...): "L'Affaire Moro", de Leonardo Sciascia (Sellerio Editore). Este outro romancista italiano, que foi também membro de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em seu país, sobre as circunstâncias do sequestro e assassinato, pelas Brigadas Vermelhas, do líder da democracia-cristã, Aldo Moro, no final dos anos 70, desenha, neste pequeno texto, uma análise exemplar das funções perversas da palavra na política (mas não apenas neste campo).
Durante seu longo cativeiro, Moro pôde escrever cartas para seus amigos políticos e familiares. As palavras dessas cartas, mostra Sciascia, constituíam uma linguagem nova, equilibrando-se sobre o vazio semântico (denunciado antes por Pasolini -terceira perna da mesma coincidência...) aberto no cenário político italiano, então dominado pelo partido de Moro. Nelas, Moro tentou "dizer" com a mesma linguagem do "não-dizer", que durante anos praticara com os italianos, tentou "fazer-se entender" com as palavras que sempre usara "para não se fazer entender". Precisava pedir por sua vida, mas não podia fazê-lo claramente; era-lhe vital denunciar publicamente a omissão dos amigos diante de seu tormento, mas não podia destruir seu partido, sua carreira e sua vida ela mesma.
Um drama que virou tragédia -de uma pessoa, de um sistema e da palavra. Não será coincidência se assistimos, neste momento, aos trabalhos de outra CPI, a brasileira, cujos investigadores-acusadores e depoentes-acusados esforçam-se arduamente por "não-dizer", usando as palavras do "dizer", por "não se fazer entender", usando as palavras do "fazer-se entender"... E não são apenas eles que se entregam a essa prática, visivelmente gozosa (e histriônica), nos senadores, e cínica (e arrogante), nos depoentes: é também a TV, e a imprensa, e a universidade e a...
O que se trava, deste modo, é uma virulenta batalha das palavras, em cujo desenrolar amontoam-se os vários corpos exangues (ex-signos) do sentido e, não raro, os corpos inanimados de gente, muita gente, de carne e osso. O domínio das palavras é, na descrição de Marx e Engels, uma câmera obscura, na qual o sentido aparece invertido -de ponta-cabeça, como convinha à obsessão de ambos estes senhores com esta posição. Para os autores, não italianos, de "A Ideologia Alemã", havia uma possibilidade de construir uma "camera chiara" por meio da palavra científica (no caso, a palavra do socialismo, a palavra do socialismo científico, do socialismo como ciência). Esta esperança reduziu-se hoje a pó, no socialismo científico e na ciência "tout court". Não existem "camere chiare" nem nas palavras, que não são mais exatas do que as imagens, nem nas imagens, que não valem mil palavras (e que às vezes não valem nada, nem uma interjeição, nem um grunhido).
Neste cenário, aquela declaração do surfista talvez não seja motivo bastante para expô-lo à humilhação pública, como querem letrados de variadas margens. Diria este surfista pós-68: "Se a palavra, como admitiam até Marx e Engels, é uma 'camera obscura', em latim, ou 'oscura', em italiano, se nem a ciência a torna mais 'chiara', por que praticá-la, por que não dispensá-la?". De fato, por quê? Por que não procurar outros sistemas mais confiáveis, como o "afetual"? Por que não?
O problema é que a peste da inexatidão e da indeterminação talvez não tenha alcançado apenas a palavra. Talvez seja, esta, uma peste do mundo contemporâneo, como admite Calvino. Difícil dizer se haverá uma vacina para a peste do mundo. Para a palavra existirá, quem sabe, uma saída. Não por meio da impossível exatidão da palavra utilitária, científica e genérica (que se aplique ao maior número), mas pelo não-utilitarismo e a não-universalidade da palavra poética, que não é apenas verbo, mas também imagem e som -desde que não se entenda, por isto, nenhum dos muitos catecismos em vigor, a começar pelos publicitários. Enquanto essa palavra não se dissemina, melhor não rir daquele surfista. Do alto de uma prancha instável (feita para isso), ele observa, propositadamente desatento, a batalha mortal das palavras na praia. Ou, se se preferir, a comédia de erros da praia das palavras.

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