São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Nunca foi tão chique ser milionário

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vivemos numa época em que ostentar riqueza virou coisa chique, ou "in", como se diz em jargão. Época avessa à solidariedade, que promove a concorrência mais selvagem entre as pessoas e subordina tudo ao êxito material, que passa a ser sinônimo de uma felicidade privada e intransferível.
É o mundo de Xuxa e Lair Ribeiro, das mulheres do Olacyr, das jóias de Hebe Camargo, da ilha de "Caras", da esperteza de Adriane Galisteu, do restaurante Leopolldo, de Amaury Jr. e Otávio Mesquita. Mundo do sorriso deslavado e sem remorsos de uma burguesia que tende para o espalhafato e faz da ostentação um prazer quase mórbido, uma vingança contra a miséria que a cada esquina lhe ameaça morder os calcanhares.
Tudo sugere que, depois da onda coletivista e contestatória dos anos 60, estamos vivendo uma nova Restauração, uma espécie de "contravapor histórico", como o que sucedeu a Revolução Francesa e pôs em xeque o seu apelo por liberdade, igualdade e fraternidade.
Respiramos uma atmosfera kitsch, que se traduz na obsessão por carros importados, na frequência dos shopping centers, na febre dos celulares, na idealização aeróbica do corpo, na estetização da vida segundo critérios publicitários de eficácia mercadológica. O mundo da Restauração é todo ele um imenso ISO 9.000.
A pobreza se transformou antes de tudo num problema estético. Ficou "feio" ser pobre. Tudo o que não é higiênico, que não resplandece, que não funciona segundo critérios de excelência, deve ser objeto de desprezo e ódio. Da mesma forma, pega mal não parecer uma pessoa bem-sucedida, segura, feliz, realizada ("analisada", se diria nos anos 70).
É nesse contexto que se torna instrutivo, pedagógico mesmo, assistir ao programa "Tycoons", ou "Magnatas", que o Discovery, canal da TV paga, exibe às quartas-feiras, às 21h. Trata-se, como o nome indica, de uma incursão pela vida de alguns endinheirados. Em tom de documentário, a meio caminho entre o colunismo social e a reportagem, o programa nos leva a conhecer a intimidade dourada dos eleitos da Terra.
Tudo é feito para que o espectador admire e ao mesmo tempo inveje o personagem, sua vida, suas mulheres (eles sempre têm várias), sua casa de praia, seu iate, seus bichinhos de estimação, seus passatempos -enfim, seu "estilo de vida". Essa é a expressão-chave.
Mais do que um milionário, é um estilo de vida que desfila diante de nossos olhos. Isso apareceu de forma cristalina na semana passada, quando o "tycoon" da vez era o cirurgião plástico Ivo Pitanguy.
Vendido pelo locutor como o "único brasileiro tão conhecido no exterior como Pelé", Pitanguy foi definido como "integrante da alta sociedade brasileira e querido pelo jet-set internacional".
Conhecemos sua clínica, entramos em seu avião, viajamos até sua ilha particular, ouvimos elogios a seu respeito vindos de figuras do "star system" que passaram por seu bisturi, ficamos sabendo que ele gasta parte de seu tempo operando "pessoas carentes" (toda Restauração tem a sua "comunidade solidária") e pudemos ainda ver alguns quadros de sua coleção particular. "O gosto artístico que ele desenvolveu na Europa está representado nas paredes da sua sala de estar", diz o locutor.
O programa transborda de realização, felicidade, ausência de culpa. Em outra época, seria fácil reconhecer o quanto há de escárnio nisso tudo. Mas os nossos horizontes estão rebaixados. Ainda vamos perder os parâmetros para medir a boçalidade superlativa de um Chiquinho Scarpa.

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