São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 1997
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Suicídio coletivo revela tecnologia permeável

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em português, inglês, espanhol, alemão ou francês, as imagens dos 39 corpos dos suicidas da Califórnia dominaram a TV durante o feriado da Páscoa. O ato extremado em busca da transcendência revela como, ao contrário do que se imaginava, as altas tecnologias contemporâneas são profundamente permeáveis a um misticismo que resiste a todos os prognósticos científicos.
As imagens do estranho ritual veiculadas pela TV em todo o mundo trazem à tona conexões que há muito circulavam no universo virtual da Internet. O contraste entre a frieza do documentário policial, o mistério da imagem do site do grupo, significativamente chamado de "Heaven's Gate", e a beleza das imagens do cometa Hale-Bopp são ilustrativos.
As imagens gravadas pela polícia norte-americana são convencionais. Elas se limitam a ocupar a superfície da tela. São imagens que representam bem o que se convencionou caracterizar como tela chapada, uma limitação da tecnologia do vídeo.
São imagens de um colorido pálido. Revelam cenários ascéticos, paredes limpas onde corpos vestidos de negro e cobertos por mantas púrpuras contracenam com computadores instalados em escrivaninhas bem arrumadas.
Já o site do grupo na Internet busca associar o infinito do cosmos à profundidade da tela. O movimento do cometa, tal como ele tem sido captado e pelas inúmeras sondas de investigação astronômica, também sugere um mergulho no infinito.
Inúmeros pensadores refletiram sobre a sofisticação dos mecanismos de dominação que acompanhariam o delírio tecnológico deste fim de século. Na esteira de Michel Foucault, que identificou no panóptico da cadeia francesa o poder de controle do olhar, toda uma literatura debateu mecanismos de poder que prescindem diretamente da força física e que são potencializados pelas câmeras.
A literatura futurista do século 20 anunciou o excesso de controle, o individualismo e a assepsia da vida que viriam com o "Admirável Mundo Novo", título do romance de Aldous Huxley.
Essa expectativa moderna de desencantamento do mundo não resiste no entanto à efervescência das crenças religiosas que marca o fim do milênio. A ciência e a tecnologia mais sofisticadas são genuinamente apropriadas para fins esotéricos. Os circuitos da Internet servem à circulação tanto de imagens e conhecimentos científicos sobre o cometa Hale-Bopp, como para o misticismo mais extremado.

E-mail ehamb@uol.com.br

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