São Paulo, terça-feira, 1 de abril de 1997
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CD leva à descoberta da música do nosso tempo

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois dos maiores compositores da atualidade são húngaros: György Ligeti (pronuncia-se Dijêrdij Ligueti), residente em Colônia, na Alemanha, desde 1956, e que terá sua obra integral gravada, a partir deste ano, pela Sony, e outro Gyorgy, Kurtág (Cúrtag), menos conhecido do público, mas reverenciado pelos colegas e por uma platéia crescente de devotos.
O lançamento de um CD da Deutsche Grammophon, com a Filarmônica de Berlim, regida por Claudio Abbado, interpretando duas obras de Kurtág, vem a propósito, no dia da chegada do presidente da Hungria ao Brasil, e serve para mostrar que o país de Liszt, Bartok e Kodály e de regentes como Nikisch, Fritz Reiner, Antal Dorati e Georg Solti continua sendo um dos centros musicais da Europa.
A fama internacional de Kurtág (nascido em 1926) chegou tarde. Virtualmente calado durante o período comunista, foi só na década de 80, em fins do regime Kádár, que uma sequência extraordinária de peças para soprano, com acompanhamentos variados, veio à luz pelas mãos de Pierre Boulez, entre outros.
"Mensagens da Finada R.S. Troussova", de 1981, sobre poemas russos de Rimma Dalos, firmou o nome de Kurtág como um dos principais compositores em atividade.
Foi seguida pelas "Cenas de um Romance" (1984) e pelos "Fragmentos" (1987), peça de 70 minutos inspirada em cartas e diários de Kafka. As duas primeiras podem ser ouvidas num CD da Hungaroton, com a soprano Adrienne Csengery e o Ensemble InterContemporain, regido por Boulez.
O novo CD traz duas composições mais recentes de Kurtág: "Grabstein fur Stephan" (1989), uma "lápide" mortuária, em homenagem ao marido da psicóloga Marianne Stein; e "Stele", outra "pedra fúnebre", de 1994, em memória de um amigo.
A primeira, para violão solo e conjunto de câmara, fraturado em grupos de teclados, percussão (especialmente gongos), metais, madeiras e cordas graves, estaria mais à vontade na companhia das esculturas de Giacometti, ou dos poemas de Celan, do que na de outros compositores -se é que "à vontade" é uma expressão adequada para essa música tão despojada e triste.
Uma explosão tripla da orquestra, verdadeira catástrofe sonora, não afeta os harpejos sempre tranquilos do violão, mas é como se esses, então, fossem uma resposta traumática, paralisada, livre de afeto, para algum evento terrível demais para ser narrado.
Já "Stele", para grande orquestra, é uma sinfonia fúnebre, em três movimentos. O adágio inicial faz uso delicado e premonitório de glissandos e oscilações microtonais, micro lamentos que levam, sem interrupção, ao segundo movimento, onde rápidas notas repetidas convergem em grandes sonoridades.
O terceiro movimento, inspirado em parte noutra composição para piano, é um dos momentos mais comoventes do repertório orquestral de hoje, uma música para além da música, repetições quíntuplas de notas se esvaindo no tempo como ondas concêntricas de uma pedra que caiu na água, até uma última, breve, imprevista e definitiva sobreposição de figuras.
Como toda a obra de Kurtág, mas de forma ainda mais marcada, a "Stele" tem a nobreza de uma integridade não só musical, mas, se se pode dizer, moral também, ou mais simplesmente, humana.
Stockhausen
Além dessas duas peças, Abbado, com auxílio de outros dois regentes jovens, interpreta a antológica "Gruppen" de Stockhausen, para três orquestras.
É difícil crer que "Gruppen" já vai fazer 40 anos, no ano que vem: parece mais viva e menos programática do que nunca.
Construída a partir das teorias do compositor sobre a equivalência entre ritmo e alturas (um pulso acelerado a mais de 12 batidas por segundo começa a soar como uma altura) e modelo de organização temporal e espacial para duas gerações de compositores, é uma das criações clássicas do serialismo de pós-guerra. A Filarmônica de Berlim toca tudo com rara precisão e entusiasmo, "à vontade" nas inter-relações furiosamente complexas das três orquestras.
Em suma: um grande disco, com três grandes peças, de dois grandes compositores. É um prazer especial (há quem diria: uma responsabilidade) descobrir a música do nosso próprio tempo. Em outras palavras: fazer com que esse tempo se torne nosso e próprio.
Não somos nós, no fundo, que vamos descobrir Kurtág e Stockhausen; são eles que nos descobrem, para benefício da música e de cada um de nós.

CD: Grabstein fur Stephan e Stele, de Gyorgy Kurtág, "Gruppen", de Karlheinz Stockhausen
Com: Orquestra Filarmônica de Berlim, sob regência de Claudio Abbado Lançamento: Deutsche Grammophon

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